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Crónicas

O exemplo que fica

O amor, a liberdade e a dignidade aprendem-se pela forma como as mães vivem a verdade

“Para ter democracia, devemos estar dispostos a lutar pela liberdade.”

A citação é de Maria Corina Machado e, na sala nobre da Câmara de Oslo, ganhou corpo na voz da filha, Ana Corina Sosa. Mais do que palavras, foi exemplo.

Na cerimónia do Nobel da Paz, a jovem chamou a atenção para algo que ultrapassa qualquer distinção: a responsabilidade de escolher, diariamente, viver e ensinar a liberdade. Ainda antes de qualquer papel público, antes de qualquer profissão, há um gesto fundador que define a forma como deixamos marcas indeléveis nas nossas filhas: a autenticidade com que vivemos o amor, exercemos a liberdade e usamos a nossa voz.

Ser mulher e mãe, sobretudo de raparigas, é aceitar que a responsabilidade maior não reside nas palavras que ensinamos, mas na forma como vivemos, não nos discursos que proferimos, mas no exemplo de integridade que oferecemos quando ninguém está a ver. É nessa coerência, entre o que se pensa, se diz e se faz, que as raparigas aprendem a reconhecer o amor que liberta e a voz que desenha limites claros e exige respeito pelo outro. Talvez por isso certos gestos me atinjam com tanta força.

Vivi algum tempo na Venezuela, numa situação de privilégio, numa zona nobre de Caracas, junto a várias embaixadas, incluindo a dos Estados Unidos, protegida, relativamente segura. Esse privilégio causava-me um desconforto profundo. A prática do igual valor e dignidade era inexistente ou praticamente impossível de praticar. Via a pobreza, a violência, a injustiça, a discriminação, o racismo, sabia que havia quem precisasse de tudo e a minha ajuda se resumia, muitas vezes, a doações. Era pouco. Quase nada, face às necessidades da maioria da população. Não era o exemplo que queria transmitir às minhas filhas. Vivia em luta comigo mesma, com os meus valores e com o exemplo do que queria ver no mundo.

No condomínio onde vivia, algumas mães estrangeiras como eu, perguntavam-me, sorridentes: “bom dia, como estás?” Respondia “bem, obrigada”, com um sorriso forçado e o peito apertado. É que sentir dói. Faz parte do preço do autoconhecimento. E se é verdade que ele não nos protege da dor, pelo menos ensina-nos a atravessá-la.

A médica geneticista da minha filha mais velha repetia-me: “a Rita tem uma forte genética europeia é por isso que nota e sente tanto essas desigualdades”. Talvez. Mas não era só isso. A genética não nos define. Define-nos o que fazemos com aquilo que vemos, sentimos e escolhemos não ignorar.

Pensava muito. Mas pensar demais não traz clareza, traz exaustão. Era assim que vivia.

Um dia, ao ir buscar a mais velha à escola, com a mais nova ainda bebé, no ovo, ao meu lado, vi a polícia a passar fita em torno de um jipe crivado de balas. O pensamento surgiu de imediato, em sinestesia: “mais um homicídio”. Nesse instante percebi claramente que algo em mim se estava a desligar. Aquilo não era normal. Estava a desumanizar-me. E se eu me habituasse, o que estaria a ensinar às minhas filhas?

Foi nesse dia que decidi sair. Por amor próprio e por amor às minhas filhas, e por recusa em transformar a sobrevivência num hábito moral.

Na véspera de regressar definitivamente a Portugal, uma das vizinhas estrangeiras que costumava perguntar-me como estava voltou a fazê-lo. Desta vez sorri, pela primeira vez sem esforço, e disse-lhe que ia embora da Venezuela: triste por não conseguir ajudar ali como desejava, certa de que era o melhor para mim e para as minhas filhas, segura de que poderia ser mais útil a esse país fora dele do que permanecendo ali. Ela abraçou-me. Com os olhos em lágrimas, respondeu apenas: “é exatamente isso que eu quero fazer também”. E agradeceu.

Maria Corina recebeu o Nobel. Sim, mas confesso que pensei noutras mulheres. Nas milhares de mães venezuelanas que vivem em condições sub-humanas, nos bairros, nas favelas, muitas vezes obrigadas a partilhar o espaço com o narcotráfico, e que, com um amor maior do que elas próprias, lutam todos os dias por migalhas de dignidade, para garantir aos filhos não apenas comida, mas futuro. Mães anónimas, que não vestem Carolina Herrera, sem passaporte, sem dupla nacionalidade, sem palco nem distinções, cuja coragem quotidiana raramente encontra lugar nas cerimónias.

Pensei também numa mãe em particular, a nossa querida Mary, que durante algum tempo me ajudou a organizar a casa e com quem chorei muitas lágrimas de riso e de dor. É a ela que vejo segurar o Nobel da Paz.

Hoje, doze anos depois, as minhas filhas continuam a ser seres humanos atentos às necessidades do outro, naturalmente voluntariosas, meigas, capazes de amar sem condições. Talvez por isso eu diga que, quando uma filha ergue, em nome da mãe, um prémio que fala de paz e liberdade, o gesto diz mais do que qualquer discurso formal. Diz que os princípios que transmitimos não estão confinados a teorias ou slogans, mas são vividos no corpo, nos passos, nas decisões diárias, nas vezes em que escolhemos atravessar o medo, honrar a verdade e sustentar a nossa voz com coragem serena. Talvez seja essa a verdadeira herança que temos a transmitir: saber que a liberdade não é um direito garantido, mas uma prática de todos os dias, que o amor não é um sentimento abstrato, mas uma promessa de cuidado que se cumpre no exemplo, que a nossa voz não é apenas palavra, mas ação consistente, coerente, moldada pelo que fazemos quando ninguém nos aplaude.

É assim que, como mães, como mulheres, como seres humanos, deixamos um legado que não se limita a um momento cerimonial, mas que vive nos gestos que tornam as nossas filhas melhores do que nós fomos.