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Acendam a luz

O meu pai contava que, na Camacha, por volta da década de 30 do século passado, as crianças pobres, quando avistavam, à noite, ao longe, na rocha de Gaula, luzes que se moviam, ficavam assustadas, pois achavam que eram “almas do outro mundo”. Não havia a cobertura elétrica pública que atualmente assegura iluminação em todos os cantos. A verdade é que aquela gente não tinha sequer eletricidade em casa, apenas os candeeiros a petróleo, e quase tudo era escuro e, naturalmente, desconhecido. E as crianças humildes daquele mundo rural encontravam no transcendente as explicações imediatas para as suas dúvidas puras que alimentavam os seus medos. O meu pai trazia-me esta lembrança real para mostrar que o desconhecimento leva a respostas precipitadas e a medos infundados, mas aquele era um desconhecimento legítimo de criança, num contexto rural específico, que recordávamos com um certo carinho.

Era uma ingenuidade muito pura, talvez traquina, que nada tem a ver com a ignorância bruta e saloia de muitos dos que, já na claridade iluminada dos nossos tempos, continuam mergulhados na escuridão, sem qualquer dimensão intelectual, moral ou ética, revelando profundas deformações de personalidade e de carácter. Só no erro da resposta se aproximam dos miúdos da década de 30 do século passado. Vivem escondidos atrás de tudo, até de quem lhes escreve os textos e de quem deles, embora de forma temporária, depende profissionalmente. São covardes, desleais, saloios, primários e imbecis.

Recordo, também, aquela personagem de Afonso Cruz, na obra “Para onde vão os guarda-chuvas”, que, num Oriente distante, diferente e perverso, quando se apercebeu que o seu filho de “três anos de idade, ainda antes de saber ler”, se sentara “em frente a uma máquina de escrever” e, lançando “os dedos contra as teclas”, escrevia versos, logo colocou a máquina “no meio da sala coberta por uma toalha” e chamou o mais prestigiado poeta da cidade para anunciar que tinha “uma máquina de fazer milagres”. Para o pai “a máquina de escrever é que era mágica”. O miúdo “era uma criança como todas as crianças”.

Existem situações de desconhecimento que se toleram em determinados enquadramentos sociais, históricos e culturais e que, de certa forma, são até divertidas quando abordadas à distância do tempo. Agora o que não podemos permitir e tolerar nos dias de hoje, muito menos em dinâmicas e em contextos públicos e institucionais, é o recurso desesperado ao discurso de paranoia anã e o delírio patético de pequenos ignorantes com algum poder em comunidades específicas, que, movidos por instintos idiotas primários, tentam confundir, desviar atenções e fugir covardemente a responsabilidades políticas. Só não percebi ainda se o fazem apenas por serem ignorantes primários ou se o fazem também por malandrice cretina de quem não tem carácter e não teve quem lhes desse educação. Em qualquer caso, julgo que, na sociedade atual, e, acima de tudo, na política, não pode mais haver espaço para este tipo de criaturas dementes. Todos temos obrigação de estar muito atentos, de ser críticos e de reagir com firmeza, por forma a que a escuridão individual desses saloios sujos não continue a contaminar uma sociedade que se quer cada vez mais esclarecida, limpa e iluminada.