Crónicas

A viagem

A minha tia não aprovava a viagem, nem as lentes de contacto, ambas faziam mal e podiam ser perigosas

Agosto está a chegar e eu dei por mim a pensar na primeira vez em que me meti sozinha num avião para umas férias a muitos quilómetros de casa. As pessoas fazem isso todos os dias, vão mundo além e mostram tudo no Instagram, até deixam informações e conselhos a quem quiser fazer o mesmo, mas em 1995 as viagens de longo curso faziam os ricos ou os nossos emigrantes no regresso à Austrália e África do Sul.

Eu não era rica e ainda não tinha metido na cabeça que me faltava uma experiência no estrangeiro. Outra questão que não se estranha ouvir de alguém com menos de 35 anos; nos anos 90 era esquisito que alguém se quisesse mudar para outro país apenas para perceber como se vivia por lá. Esta necessidade tem até uma definição e vem naquela expressão de “ganhar mundo”.

E foi essa ideia que me moveu naquele mês de Agosto antes de ir de férias para Macau. Não era bem a aventura de mochila às costas, teria uma amiga à espera do outro lado, mas as minhas tias ficaram num desassossego quando perceberam que ia mesmo e que ia sozinha, eu e os dois sacos de viagem que despachei para Amesterdão. Lembro-me que a minha tia Alice implorou que não levasse as lentes de contacto.

Talvez se perceba por esta história o ponto em que a nossa existência estava. A minha tia não aprovava a viagem, nem as lentes de contacto, ambas faziam mal e podiam ser perigosas. Podia lá ter uma espécie de óculos dentro dos olhos e só por inconsciência e excesso de liberdade ia da Madeira a Macau assim, sem apoio, sem companhia. Foi mais ou menos o discurso que me fez, enquanto eu carregava os sacos onde tinha enfiado quase toda a minha roupa de Verão.

As modas acabaram por subir a encosta e chegar ao Laranjal, mas em 1995 ainda valiam as regras antigas e por isso quando me livrei do choro e da preocupação e dei por mim no avião para Amesterdão fui tomada pelo medo. Medo de me enganar e não encontrar o avião para Hong Kong, de não me fazer entender, de me perder e não chegar ao destino.

E esse medo avolumou-se ainda mais sobre a minha cabeça quando desembarquei num dos maiores aeroportos do Mundo e fiquei atordoada pela quantidade de lojas, restaurantes e pessoas de vários feitios e etnias que se cruzavam comigo. Eu não sabia que os aeroportos podiam ser daquele tamanho e acolher tantas pessoas. Os altifalantes não paravam de anunciar a última chamada para uma cidade qualquer e de pedir a um passageiro perdido que fosse para a porta de embarque.

Uns senhores de Santa Cruz que estavam de volta à Austrália orientaram-me, eles iam para Singapura primeiro, depois para Sydney e percebiam de ligações e malas, entendiam as indicações e os letreiros e disseram que corredor seguir, mas eu acabei por me distrair com as montras, com a quantidade de coisas que havia à venda, que me pareciam lustrosas e apelativas.

A miúda moderna e aventureira que descera as escadas da entrada no Laranjal e se livrara dos lamentos e dos choros das tias, essa miúda de horas antes era, naquele momento, uma provinciana esmagada pela aura cosmopolita de Schiphol.