Crónicas

7 Pecados

A maioria de nós acredita que votar é a democracia, que a eleição é a única forma de escolher os titulares…

1. Disco: esta semana lembrei-me de Chico Science. Músico e activista brasileiro que revolucionou a música da sua cidade, Recife, deixando marcas que ainda hoje perduram. A sua morte prematura alcandorou-o ao palco dos mitos. Misturou rock, hip-hop, funk, disco, maracatu, MPB, como nunca ninguém fez. Criou o mangue-bit, uma música potente, crua, dura, cheia de riffs orelhudos. Para quem não conhece é só passar por qualquer plataforma de “streaming”. E à boleia cavalguem também Nação Zumbi (onde Chico “militou”), Fred04, Otto, Mundo Livre SA, Mestre Ambrósio, etc.

2. Livro: “Como Perder uma Eleição”, de Luís Paixão Martins. Uma ode ao próprio, mas com vistas interessantes sobre um percurso de vida. Um livro que não podia deixar de ler.

3. Ando rabugento. Mal disposto. Com uma enorme falta de paciência. A minha mulher que o diga.

Como dizia Sophia, “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. Tenho neste pensamento da poetisa um lema de vida. E pelo que vejo, pelo que ouço e pelo que leio, não consigo ignorar.

Não consigo ignorar a falta de esperança que encontro por todo o lado. Não posso ignorar o que me dizem os “anónimos”, que comigo falam e me dão conta de já não terem nada em que acreditar. Não consigo ignorar que esta terra que amo é um dos territórios do meu país com maior risco de pobreza. Não posso fingir ignorar a constante destruição do sistema produtivo, por mero desleixo e incompetência. Não ignorar o culto da mediocridade, da baixa política. Não deixo de notar que o amiguismo, o nepotismo, a protecção do cartão do partido, a percepção de corrupção, continuam a fazer escola.

Vivemos em tempos em que a banalidade da estupidez e a respeitabilidade da mediocridade tornaram-se normais. É tudo feito apoiado na inutilidade, uma espécie de meia bola e força, atirando medidas aleatórias ao ar, para parecer que fazem alguma coisa. Isto cansa, desgasta, magoa. Não se distinguem os meios dos fins, pois a teia é longa e intrincada. Os de menos tornam-se, num instante, em de muito, e os que nos podem valer são literalmente varridos. Lêem um livro — e nem chegam ao fim —, umas frases soltas aqui e ali, e enchem a barriga com chavões que debitam do alto da sua soberba. A opinião dos outros e a nossa é uma e o mesmo. E quem não nos adora, não presta. É apoucado por mais que faça, por melhor que seja.

Predomina o maquiavelismo do ser possível chegar ao bem por meio do mal. Ou como disse Montaigne: “o bem público requer que se traia e que se minta, e que se assassine”. Há quem leve isto à letra. O princípio é o de sacrificar a honra e a consciência, se é que as têm.

Há um orgulho em ser nada, uma avareza de ideias e princípios, uma luxúria ao espelho, uma inveja sem limite, a gula de em tudo querer meter o bedelho, uma ira inexplicável, e muita preguiça. São poucos, os destes, que conseguem não cometer os sete pecados.

4. Gosto de pensar o sistema político, de pensar a democracia. De procurar saber mais sobre os seus mecanismos e como melhorá-la. Tenho uma leitura desta ser um processo em constante mudança e adaptação ao modo, ao tempo e às circunstâncias. Os modelos não podem ser perpétuos, têm de evoluir connosco. E será sempre essa capacidade de se fazerem leituras, que levem ao rever e reformar, que deve pautar a nossa actuação.

A maioria de nós acredita que votar é a democracia, que a eleição é a única forma de escolher os titulares dos diferentes cargos… mas estamos enganados.

A democracia primordial, na antiga Atenas, escolhia apenas dez por cento dos seus funcionários por intermédio de uma eleição. Os restantes eram seleccionados por sorteio — uma espécie de lotaria, que escolhia cidadãos aleatoriamente para actuar como legisladores, jurados, magistrados e administradores da coisa pública. Esse acto era designado como “kleroterion”. Da cidade grega às cidades-estado italianas da Renascença, usavam o sorteio, e não as eleições, para escolher muitos dos titulares de cargos políticos.

Entre nós, temos algo parecido nos julgamentos com júri. Dentro de certas condições, previamente definidas, efectua-se um sorteio aleatório, de modo a escolher os jurados.

Aristóteles defendia este sistema como o mais perfeito. O filósofo ateniense entendia que o sorteio é o melhor método de escolha de titulares de cargos em democracia, enquanto a eleição tende a sustentar as oligarquias onde os que exercem o poder, mesmo que eleitos, podem manipular o processo eleitoral. Com o sorteio, a probabilidade estatística garante uma selecção aleatória levando a uma representação mais fluida.

Para os defensores deste sistema, numa democracia perfeita, os interesses de todos os cidadãos receberiam igual consideração, porque uma assembleia de cidadãos, estatisticamente, será sempre representativa do todo. Ninguém recebe tratamento preferencial por parte dos decisores, porque serão os cidadãos quem toma as decisões.

No nosso modelo democrático imperfeito — como o serão sempre todas as organizações humanas — indivíduos e organizações poderosas distorcem o processo democrático ao fazerem doações aos partidos políticos e candidaturas, ao oferecerem empregos lucrativos a funcionários públicos após estes deixarem a vida pública, ao subornarem funcionários com dinheiro, viagens e presentes, enquanto estes exerciam o cargo para o qual foram eleitos.

Nas assembleias cidadãs, que nos nossos dias têm um aspecto mais consultivo, mas muito necessário, as coisas são feitas sobre uma base voluntária. Um processo típico enviaria 10.000 convites e, a partir dos que responderem, obtém-se um grupo de interessados. Este grupo estará fortemente distorcido, especialmente ao nível socioeconómico ou/e educacional. É normal haver uma relação entre estes dois factores e os que se registam como interessados em participar. Mas isto pode ser ultrapassado mandando, por exemplo, mais convites para quem viva em áreas mais desfavorecidas do que para as outras.

Este modelo de participação cidadã, não é difícil de implementar. Em alguns modelos de orçamento participativo é isso que se verifica numa primeira fase, onde os interessados se reúnem e escolhem os projectos a apoiar nessa sessão que, posteriormente, serão votados numa votação global aberta a quem queira participar.

Sendo um processo que me levanta muitas questões, não o rejeito. É, e isso não me oferece dúvidas, uma forma de capacitar os de pouco, os de muito pouco, os pequenos, seleccionados aleatoriamente, para que participem, pensem e decidam sobre alguns assuntos. E isso constitui uma forma de empoderamento e de participação. Sobre essa perspectiva, como diz um amigo meu, “parece-me bem”!

5. “Enumero algumas virtudes: a inteligência natural, a coragem, a serenidade, a garra, a astúcia, a resistência, a saúde dos instintos, a capacidade de conciliar o inconciliável. Enumero alguns defeitos: a impulsividade, a inquietação constante, a falta de escrúpulos, o talento para o engano, a vulgaridade ou a ausência de refinamento nas ideias e nos gostos; também, a ausência de vida interior ou de personalidade definida, o que faz dele um bufão camaleónico e um ser transparente cujo segredo mais recôndito consiste em não ter segredo nenhum. O político puro é o “contrário de um ideólogo, mas não é só um homem de acção; tão pouco é o contrário de um intelectual: tem o entusiasmo do intelectual pelo conhecimento, mas emprega-o em detectar a morte no que parece vivo e em afinar o ingrediente essencial e a virtude primária do seu ofício: a intuição histórica” – Ortega y Gasset