Uma freira com a sua acompanhante, década de 1810, autor desconhecido, publicado em “A History of Madeira”, 1821
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As freiras de Santa Clara

O convento de Santa Clara não é só uma das mais antigas instituições monásticas onde ainda se conservam freiras. Foi também a mais importante empresa madeirense ao longo de três séculos, servindo ainda como instituição financeira e centro de formação feminina, com a particularidade de ser inteiramente gerida por mulheres, da forma mais democrática possível

No último quartel do século XV, o então capitão do donatário João Gonçalves da Câmara dirigiu ao papa um pedido de autorização para fundar um convento de Clarissas, do qual, na sua opinião, a ilha carecia e onde pudessem abrigar-se não só duas das suas filhas que se encontravam em Beja, no convento de Nossa Senhora da Conceição, mas também outras jovens que decidissem ser religiosas.

O papa anuiu e a 4 de maio de 1476, através da Bula Eximiae devocionis affectus, concedia licença para a fundação do convento, entregando também ao capitão o padroado da instituição, extensível aos seus descendentes. Nas diligências necessárias a esta benesse também interveio D. Manuel, enquanto duque de Beja e Mestre da Ordem de Cristo, a quem o papa solicitou ajuda para a fundação de uma casa de religiosas na Madeira, comprometendo-se o futuro rei a contribuir para a sustentação das freiras. 

 A localização escolhida para a nova instituição ficava nos arredores da igreja da Conceição de Cima, muito perto de onde morava a família Câmara, nas Cruzes. Depois de tratados todos os assuntos necessários ao início das obras, estas acabaram por não acontecer, por motivos desconhecidos, e somente em 1491, ou inícios do ano seguinte, na sequência de nova autorização papal, o edifício se principiou a erguer. Dadas as frequentes ausências de João Gonçalves da Câmara para a corte, ficou encarregada da supervisão dos trabalhos a sua filha D. Constança, naquela que constitui uma decisão um tanto surpreendente numa época em que não era hábito entregar-se este tipo de função a uma mulher.

O mosteiro acabaria por estar concluído apenas em 1497, após a emissão de nova bula que estipulava que o convento fosse de perpétua clausura, subordinado ao guardião franciscano, e obedecesse à 2.ª Regra de Santa Clara, também chamada Urbaniana por ter sido aprovada por Urbano IV. Esta regra, fundada em 1263, distinguia-se da 1.ª regra por autorizar às freiras a posse de bens, a levarem servidoras consigo e a consumirem ovos e laticínios nos dias em que tal era permitido aos seculares, ou seja, permitindo uma série de privilégios que, no fundo, afastavam a Ordem do ideário primitivo.

 As primeiras Irmãs a entrarem na instituição chegaram de Beja logo de seguida, encontrando-se entre elas as já referidas duas filhas do capitão, D. Isabel, que se tornou abadessa, e D. Elvira. O ingresso no convento, que D. Manuel limitara às “filhas e parentes dos principais da terra”, obedecia ao pagamento de dote, entregue em dinheiro no valor de 200 000 reis, ou em ou em bens fundiários de importância equivalente. As filhas de João Gonçalves da Câmara, por exemplo, levaram consigo uma grande propriedade que o pai lhes doara, à época designada como Curral Grande, a qual por esse motivo viria depois a ser chamada de Curral das Freiras. À semelhança destas Irmãs, todas as outras contribuíram com os dotes exigidos, muitos dos quais sob a forma de terrenos espalhados por toda a Ilha da Madeira e no Porto Santo, o que rapidamente transformou o convento no maior proprietário insular. Dessas terras, administradas pela abadessa com a ajuda de um síndico, recebia a instituição açúcar e vinho, que exportava, assim como produtos alimentares que se consumiam nas refeições conventuais. A estes rendimentos, somava-se um outro, proveniente de empréstimos a juro de 5%, permitido pela Igreja, o que transformava o convento numa espécie de casa bancária, por um lado, mas por outro permitia às freiras uma vida confortável e desafogada, como desejavam as “filhas dos principais” que para se recolhiam.

A idade mínima para entrar no convento era a de sete anos, embora por vezes chegassem crianças mais novas. O destino que as esperava podia ser um de dois: ou professavam, tornando-se freiras mais tarde, ou se limitavam a receber uma educação esmerada que as tornaria competentes na gestão das suas futuras casas e na sociedade que haveriam de frequentar. Ali se aprendia a ler, escrever e contar, mas também latim, música, caligrafia, artes decorativas, bordados e cozinhados. 

 As capacidades das Irmãs em alguns destes domínios foram atestadas por visitantes estrangeiros, como foi o caso de Hans Sloane, médico inglês cujo trabalho de pesquisa e recolha possibilitou a fundação do British Museum, da British Library, e do Museu de História Natural de Londres, a quem pediram, em 1707, que fosse ao convento para avaliar o estado de saúde das freiras. O diagnóstico foi que havia muita tuberculose e “clorose” (anemia), em consequência da vida sedentária e recolhida que levavam, mas por ter sido convidado para almoçar, pôde depois comentar que se deliciara com frutas e compotas de produção local, servidas numa sala cuja mobília era também fruto do labor das freiras, duas artes que o médico considerava nunca ter visto tão boas “quer nas compotas, quer no mobiliário”. 

 Outro aspeto interessante da vida conventual era a forma bastante democrática de gerir a instituição. Assim, a Abadessa era eleita de três em três anos, não podendo cumprir dois mandatos consecutivos, nada obstando a que após o desempenho do cargo se visse incumbida de uma qualquer tarefa humilde como a de porteira ou rodeira. A assessorá-la estava um grupo de conselheiras, também designadas por “discretas”, que constituíam o Conselho ou Discretório, reunindo-se todas as religiosas professas uma vez por semana para em conjunto debaterem os assuntos de interesse para a comunidade, demonstrando uma organização interna de poder bastante partilhada.

Ao longo do século XVIII, a fortuna do convento começou a declinar, vindo o golpe de misericórdia a ser aplicado pelo liberalismo que, por uma lei de 1834, mandou encerrar todas as casas conventuais, com efeitos imediatos nas masculinas. Para as femininas, porém, e atendendo à impossibilidade de lançar no exterior uma grande quantidade de mulheres impreparadas e indefesas, optou-se por adiar o encerramento até à morte da última freira, o que no caso de Santa Clara se verificou em 1890. Apesar do que determinava a lei havia então a viver no convento um grupo de senhoras, servas, recolhidas e pupilas, que pediram e obtiveram licença para ali permanecerem, transformando-se assim Santa Clara num Recolhimento.  Em 1896, o edifício foi doado à Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas, mas as senhoras lá continuaram a viver numa área reservada, onde se conservaram até cerca de 1940. Em 1898, a Associação conseguiu instalar naquele espaço a Congregação das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, que o usaram para preparar Irmãs para missionárias, fornecendo àquelas que já o eram um local de recuperação e repouso. 

 O advento da República, veio, no entanto, a pôr cobro à situação, passando o prédio para as mãos da Câmara Municipal, da Santa Casa da Misericórdia e finalmente do Auxílio Maternal. A necessidade de se voltar a apostar na missionação em África fez com que, em 1929, se devolvesse o prédio à congregação que anteriormente o ocupava, e que até hoje ali se mantém, conservando a vocação monástica do espaço.