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Notas da quarentena, 2

A evidência que vivemos dá expressão, e do pior modo, ao que apelidamos de mudanças globais

Passados poucos meses, a contabilidade foi-se ajustando, com o inexorável sentimento da vulgarização do seu significado, chegando-se ao ponto de aceitar, em alguns contextos, como excelente haver “só” pouco mais uma centena falecimentos por dia. No oposto, ter conseguido manter o número de vítimas mortais em zero, não deixa de ser extraordinário e revelador do empenho e capacidade de gestão num cenário desconhecido, imprevisível e incontrolável na sua plenitude. Parabéns à Madeira e a quem coube a responsabilidade de gerir este momento inédito da nossa história.

Confinamento, em maior ou menor grau, é consequência e reacção ajustada que, mais dia, menos dia, dará lugar a uma nova normalidade. De novo, essa normalidade, necessita de mais do que prevenção, cuidado e adaptação, nos espaços, nas pessoas, nas relações, nos processos, nos produtos, enfim, naquilo que somos. Essa nova realidade, que em boa verdade é onde já nos encontramos, obriga a outras tomadas de decisão com a mesma determinação com que se remeteu o Mundo inteiro ao confinamento.

A evidência que vivemos dá expressão, e do pior modo, ao que apelidamos de mudanças globais, cujo menu incluirá, com elevada probabilidade, outras pandemias e desafios igualmente críticos e democraticamente estendidos pelo pequeno planeta Terra. Naturalmente que, como se vê relativamente à COVID-19, a democracia da distribuição não é sinónimo de equilíbrio nos resultados e impactos. Basta pensar nas mínimas medidas de higiene que uma enorme, se não, maioria, da população humana não tem condições de implementar por falta de meios, entre eles coisas tão simples como água e sabão.

Não sendo possível viver em permanente estado de crise nem fazer dos governos apenas gabinetes de crise, o que seria tão ineficiente como demasiado arriscado, por diferentes razões, e não sendo desejável manter políticas, modelos de gestão e de governança desajustados daquilo que venha a ser a nova normalidade, o verdadeiro desafio passa a ser a mudança de modelo de desenvolvimento. E tal mudança, como está bem à vista, dispensa os habituais períodos transitórios, os típicos paninhos quentes ou mecanismos de adaptação porque, pura e simplesmente, todos passámos a ter a certeza de que o Mundo, às vezes, muda mesmo, e de um dia para o outro. Tomemos a União Europeia por exemplo e vejamos o quanto tem sido difícil compatibilizar um discurso consciente e ambicioso relativo à transição para um modelo de desenvolvimento mais sustentável e os obstáculos, constrangimentos e resistências que persistem na activação dos instrumentos necessários para a efectivação dessa transformação, que tarda. O Pacto Ecológico Europeu pode ser o instrumento fundamental para que a Europa não só resolva a situação gerada pela COVID-19 como saia dela rumo a uma forma mais sustentável de desenvolvimento, sem deixar ninguém para trás. Não é aceitável continuar na contradição entre a proposta e discurso de liderança Europeia na transição para uma economia de baixo carbono, com inovação e uso inclusivo efectivo do digital, com utilização inteligente dos recursos naturais, com consideração e valoração adequada dos serviços prestados pela biodiversidade e ecossistemas e a imutabilidade dos sistemas financeiros e fiscais.

Esta dinâmica transformadora pode igualmente ser experimentada a nível local e nacional, o que, tal como a experiência com o corona vírus, alimentaria uma produtiva partilha de experiências em torno de uma ambição comum, um mundo melhor, mais justo e mais sustentável. A ideia de que se pode mudar apenas pelo discurso tem os seus dias contados.

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