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Crónicas

O que fica do que passa

Escrever na areia: deixar que as palavras sejam apagadas pelas águas da próxima maré.

Segundo um conto oriental, o que é bom e belo e merece subsistir, deve ser escrito na pedra — como a Lei de Moisés; o que não é justo nem digno e não merece ser lembrado, tendo por futuro o esquecimento, é escrito na areia — como fez Jesus na cena da mulher adúltera face à armadilha dos fariseus, que foram saindo calados, talvez com a cabeça entre as pernas de tão baixa, e mais a consciência pesada, percebendo que nem o Deus de Moisés nem Aquele que Jesus chamava Pai estava com eles...

Escrever na areia participa, portanto, do efémero da comunicação humana. É sempre um exercício arriscado: as palavras ficam aquém do vivido, elas dizem sempre demais ou de menos, a ambiguidade segue-as como uma sombra. E, no entanto, escrever é preciso. Há uma memória dos dias que resiste e quer durar face à voragem do tempo, mesmo que pouca coisa mereça ser escrito na pedra. Mas o homem é o único animal que fala e há toda uma lenda de humanidade vitoriosa e feliz porque a palavra nos foi dada, e por ela civilizações inteiras nos trouxeram, pelos séculos adiante, até àquilo que agora somos. Nesse devir do homem e da história, a palavra foi na verdade o traço, a pegada, o cadinho, o sonho, a noite escura da alma e a incandescência da luz que salva. Sempre colada à pele e ao quotidiano, prosaica ou exaltante, a palavra está onde nós estamos: nela e por ela habitamos a breve existência.

Escrever na areia é tudo o que, por agora, é preciso. Dar conta da dor e do sofrimento, mas também da esperança e do sentido. No lastro imenso do inumano que, todos os dias e por toda a parte, vai deitando a cabeça de fora, pequenos milagres de humanidade redimida proclamam a dádiva e o dom de existir como pura graça: o homem maior que o homem, a palavra como centelha divina apontada à utopia da vida contra a morte.

Por isso, escrever é preciso, mesmo que seja na areia e, afinal, tão perto já do esquecimento que hoje devora por dentro o imparável linguajar ‘netiano’ de todos os dias.

Mesmo que o verbo dure só o tempo da maré, escrever é preciso. Como diziam os latinos: as palavras voam, mas a escrita permanece. Há uma memória de humanidade e de esperança que não pode ser levada pelo vírus. Pensar é preciso, e escrever também. Mesmo que seja, na aparência, um exercício fútil plantado no jornal quotidiano, que é na verdade uma pequena epopeia de liberdade destinada ao ocaso pela edição seguinte. Não interessa: algo resiste, algo permanece. As palavras sempre podem dizer o que fica do que passa — e isso vale a pena.

Cá estamos. A ver se a maré dura, e nos vai dar ainda algum tempo para o exercício...

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