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A epidemia e a cidade

Porque se propuseram, então, os arquitectos, no período entre-guerras, a acabar com as ruas?

No seu último número, a Time publica a fotografia de uma rua de Barcelona em tempos de pandemia: num ritual que todas as noites se repete, as varandas enchem-se de gente que a elas assoma para cantar ou aplaudir, num daqueles enlaces humanos que, entre o heroico e o piegas, nos torna capazes do melhor ou do pior. Mas o que me chama a atenção não é o clamor fraternal da comunidade, é o cenário onde ele decorre: a rua. Sem rua – sem uma fachada frente a outra, sem o som que entre ambas ecoa, sem o palco da janela que do outro lado se ilumina – nada disto seria possível. A rua, densamente habitada, contida por dois planos opostos de fachada, é – sempre foi! – o artefacto fundamental de qualquer cidade. Nela se vive e se convive; nela se compra e vende; nela se erguem barricadas em tempo de guerra e desfilam heróis em tempo paz; nela ecoa o bater das panelas ou cânticos de esperança em tempos de pandemia.

Porque se propuseram, então, os arquitectos, no período entre-guerras, a acabar com as ruas? Por estranho que pareça, tudo se ficou a dever a uma pandemia que, no século XIX, chegou a ser a principal causa de morte das populações europeias, ameaçando mesmo a sua sobrevivência: a tuberculose. Como questão de saúde pública, a doença teve uma origem urbana e a prova disso foi a forma como atingiu as maiores cidades de Inglaterra, um dos primeiros países a industrializar-se. Devastando as ruas densamente povoadas e poluídas dos slums operários, a tuberculose não poupou, sequer, os bairros ricos – de onde saia, aliás, a clientela que passava o inverno na Madeira, em cura de ares. Os médicos recomendavam: é preciso sol, é preciso ar puro e livre circulando, é preciso evitar as ruas da cidade compacta onde pairam os miasmas contagiosos.

Assim nasceu a ideia profilática da “cidade jardim” e, mais tarde, alimentada pelo delírio eugenista de Le Corbusier – o mais influente arquitecto do século XX – a utopia da “cidade radiosa”, onde se propunha acabar definitivamente com a rua, tal como a conhecemos há, pelo menos, 8.000 anos. Resumidamente: a ideia era dispor um conjunto de blocos e torres num extenso jardim, varrido pelo ar limpo e pelo sol – os únicos remédios conhecidos para debelar epidemia. No pós guerra, apesar da eficácia do tratamento à base de estreptomicina, a teoria persistiu e deu origem a algumas das mais desconchavadas e desinteressantes periferias do mundo industrializado e a instalações humanas inviáveis, de tal modo elevados são os custos da construção dispersa. Em 1961, no seu livro “Vida e Morte das Grandes Cidades Americanas”, Jane Jacobs pôs em causa a delirante teoria dos apóstolos da “cidade radiosa”. As ruas têm olhos que nos protegem – escreveu. Concluímos hoje que também têm vozes que nos unem: as vozes que ecoam, nestes últimos tempos, nas ruas das cidades europeias.

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