A Gloriosa Prosperidade da Ilusão Pública
1. [O milagre económico onde todos crescem, excepto quem cá vive]
A informação da Direcção Regional de Estatística sobre o Indicador Regional de Atividade Económica parece, à primeira vista, um relatório comum, uma peça neutra de contabilidade pública, mas à medida que o lemos percebemos o artifício. Não é informação: é encenação. Vem com números organizados, com frases polidas e com aquele ar de quem pretende apenas “informar”. Mas o que realmente procura é criar a sensação de que a economia cresce e que devemos aceitar isso como prova de progresso. O velho truque: transformar um fenómeno estatístico num argumento político.
Dizem que crescemos porque o PIB sobe, porque o IRAE está em terreno positivo, porque há mais dormidas, mais aviões e mais cartões estrangeiros a passar nas máquinas. Como se prosperidade fosse isto. Como se viver fosse isto. A economia reduzida a contagem de cabeças em hotéis e a ruído de terminais multibanco.
Medir a economia exclusivamente pelo PIB é como medir a saúde de alguém só pela temperatura enquanto ignora os sinais mais graves: os salários que não acompanham o custo de vida, a impossibilidade de poupança, o endividamento privado que cresce para garantir necessidades básicas, a habitação inacessível para quem trabalha, a distribuição assimétrica da riqueza entre quem vive aqui e quem apenas investe cá, a produtividade que não avança, os jovens qualificados que emigram porque aqui não há futuro, os trabalhadores que têm dois empregos para sobreviver, as empresas que fecham quase tão depressa como abrem, os vínculos precários que se tornam regra, o cansaço estrutural escondido atrás de números vistosos, a impossibilidade de mobilidade social, o facto lamentável de tanta gente estar a três salários de distância da miséria real.
Nada disso aparece no relatório. Como não aparecem os indicadores que qualquer sociedade séria deveria colocar no centro do debate público: o rendimento disponível real após impostos, a percentagem de trabalhadores que vive ainda em casa dos pais por falta de alternativas, a proporção de contratos sazonais no turismo e serviços, a taxa de burnout que ninguém mede mas toda a gente sente, a evolução do rendimento mediano e não apenas do médio, o número crescente de pessoas que deixam de ir ao médico para não pagar deslocações ou taxas, o impacto da economia turística no preço dos bens essenciais, o número de trabalhadores que aceitam horas extraordinárias não por ambição mas por desespero, a quantidade de lucro gerado na Região que sai da Região, o quanto dependemos de importações para sobreviver, a incapacidade de criar sectores alternativos ao turismo, o facto de não existirmos em cadeias de valor global mas apenas no catálogo de destinos.
E depois há o segredo que atravessa o texto inteiro como um nervo exposto: este suposto crescimento acontece apenas porque o turismo cresce. Não temos indústria, não temos produção transformadora relevante, não temos tecnologia, não temos escala agrícola, não temos inovação com peso económico. Temos turismo. Apenas turismo. O turismo não é parte da economia. É a economia. E quando o destino económico de uma sociedade depende de uma única actividade, o nome verdadeiro não é progresso. É dependência. Dependência com vista mar.
As dormidas crescem, o RevPAR dispara, o aeroporto conta passageiros como quem conta moedas, os cartões estrangeiros enchem tabelas. E ao mesmo tempo, silenciosamente, o consumo interno cresce não porque há prosperidade, mas porque cresce a dívida: os cartões nacionais sobem, os empréstimos ao consumo também, a gasolina aumenta porque ninguém tem alternativa de mobilidade. Há quem diga que isto significa confiança. Quem vive aqui sabe que significa sobrevivência.
O relatório esconde, mas não consegue apagar, as fendas: o comércio desce, os serviços desmotivam, a indústria transforma-se em eco de passado, as empresas duram pouco, os sectores produtivos diminuem, o cimento baixa como se até a construção tivesse começado a duvidar do futuro, as viaturas comerciais caem como quem admite que a actividade real não corresponde ao discurso.
E depois a habitação, essa caricatura cruel. O valor bancário sobe 16,7%, dito como se fosse motivo de orgulho. O que realmente significa é que a casa deixou de ser lar. Tornou-se produto financeiro, instrumento de extracção de riqueza, objecto especulativo. Quem tem espera. Quem não tem desiste ou parte. As casas transformam-se em vitrines inacessíveis para quem trabalha todos os dias.
E como se nada disto bastasse, o relatório fecha com a inflação: 3,3%. A mais alta do país. E aqui está o golpe final. A inflação, tal como está, não é apenas custo de vida. É um imposto silencioso, perfeito na sua crueldade: aumenta o IVA, aumenta a receita nos combustíveis, aumenta a arrecadação em tudo o que depende de preços finais. O governo arrecada mais sem legislar, sem enfrentar oposição, sem explicar. A população empobrece. A colecta fiscal engorda. Todos fingem que é inevitável.
E no fim, depois de páginas com números e frases neutras, depois do optimismo disciplinado, depois da maquilhagem estatística, sobra a pergunta que o documento evita com um cuidado quase religioso:
Crescemos para quem?
Para gráficos? Para discursos? Para mercados externos? Para investidores com casas que nunca habitam?
Porque se formos honestos, a resposta não muda: crescemos, sim, mas crescemos para a estatística, não para as pessoas.
2. O Luxo da Carência
[como a Madeira se habituou a viver de hotéis de cinco estrelas com trabalhadores de duas]
Fui alertado há dias por um bom amigo para a falta de mão-de-obra na hotelaria e não me surpreendeu, já todos sabíamos, como se soubéssemos de cor a meteorologia da ilha, o vento leste, as nuvens baixas, o frio que entra pelas janelas mal fechadas, e ninguém tivesse coragem de dizer em voz alta. Há uma espécie de silêncio cúmplice em torno disto, como se fosse uma fatalidade antiga, um destino inscrito no mar. O sector que alimenta a Madeira, que a sustenta, que lhe dá o verniz de prosperidade, vive com um vazio que não se consegue preencher. Faltam trabalhadores em todo o lado: cozinhas, limpezas, recepções, bares, manutenção. Não é apenas uma questão de números. É de qualidade, de saber fazer, de mãos que conhecem o ofício.
Na hotelaria não basta a pressa de ganhar um ordenado ou a boa vontade de servir. Exige-se disciplina, formação, capacidade de resolver o imprevisto, domínio de línguas, técnica apurada, um certo instinto de servir com elegância. Nada disto se improvisa. E muitos dos que chegam, vindos de fora, carregam apenas a urgência da sobrevivência. São contratados porque não há alternativa, atirados para funções para as quais não foram preparados. E o hóspede sente isso no prato mal servido, no quarto apressado, no bar desorganizado.
A Madeira não construiu o turismo nas camas dos resorts nem nas fotografias de brochura. Construiu-o na experiência íntima, na hospitalidade que parecia natural, no cuidado invisível, no gesto discreto. Foi isso que lhe deu reputação. Se se perde, perde-se tudo. O hóspede perdoa a chuva, a estrada estreita, o vento. Não perdoa ser mal recebido. Paga caro, exige, e basta uma má experiência para apagar uma década de discursos oficiais.
Durante anos multiplicaram-se planos, recordes de visitantes, festas de inauguração. O essencial ficou esquecido: formar gente, dar-lhe futuro, criar condições para que fique. Escolas de hotelaria subfinanciadas, salários curtos, carreiras sem horizonte. O resultado é grotesco: hotéis de cinco estrelas servidos por serviços de duas.
E o problema não é apenas da hotelaria. É de toda a economia regional. Se a hotelaria colapsa em qualidade, arrasta consigo a restauração, o comércio, os transportes, a animação. Um turista insatisfeito não volta, não recomenda, e a ilha, que depende em mais de um terço do seu produto desta máquina, arrisca-se a implodir.
A raiz é simples: acreditou-se que o mercado podia ser manipulado sem consequências. Congelaram-se salários, acreditou-se na ficção de que “há sempre quem venha de fora”, tratou-se a mão-de-obra como descartável. Mas só há profissionais quando há incentivos: ordenados decentes, oportunidades reais de carreira, habitação acessível, vida com dignidade. Sem isso, os jovens partem e os que chegam não chegam preparados.
Podem repetir relatórios sobre “sustentabilidade”, podem exibir números de desembarques no aeroporto. Não serve. O que conta são as pessoas. São elas que cozinham, limpam, recebem, resolvem. Sem elas, o turismo é fachada, é cenário vazio.
E a pergunta que fica, a que não quer calar, é esta: quanto tempo mais viverá a Madeira do crédito do passado, antes que a conta da mediocridade seja apresentada?