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Sobre estátuas e homens

Desde os primórdios da arte, todos os tipos de monumentos foram feitos para glorificar pessoas, ideias e eventos. Representam uma aposta na imortalidade, a solidificação de uma ideia e da sua afirmação perante outros. Representam também um certo ponto de vista promovido pelas autoridades e, implantados num lugar público, têm a função de o sancionar enquanto a versão pública da história. Praticamente desde então, de uma maneira documentada já no terceiro milénio a.C., é que o ato de destruição destes monumentos representa um ato de rebelião. Destruir a imagem de alguém traduz-se no desejo de destruição dessa pessoa ou ideia. Estátuas romanas ou efígies de santos com os olhos arrancados, caras picadas e corpos cruelmente desfigurados – eis a humilhação que transmite a satisfação e vingança do feitor. Igrejas transformadas de uma religião para outra, palácios, lugares venerados e monumentos demolidos sem rasto. Edifícios destruídos para construir outros, no mesmo lugar, mas com a mensagem oposta. Muitos dos maiores monumentos da Grécia antiga, feitos em bronze, desaparecidos para sempre por terem sido transformados pelos seus conquistadores em balas para canhões ou dinheiro. A história da arte espelha a história da humanidade, repleta de lealdades mutáveis e passados turbulentos. Na história, a destruição é a norma, e a preservação, uma exceção.

Hoje em dia está a ser questionado tanto o passado como a ideia do futuro na presença de certas estátuas e das ideias que elas representam. De uma ideia em particular: a supremacia branca. Não é de admirar, portanto, que nestes dias estamos a testemunhar uma rebelião contra esta ideia e os seus símbolos. A globalização do movimento antirracista traduziu-se no alastramento da rebelião também nos países cujo passado e cuja prosperidade em boa parte foram construídos nessas ideias. Países cuja memória coletiva é conflitual e cuja narrativa histórica não é consensual.

Uma estimativa indica que cerca de 12 milhões de escravos de origem africana foram enviados para as colónias americanas durante os quatro séculos deste negócio com as vidas humanas. Destes, 1.5 milhões pereceram já nos navios. Mas havia escravatura também no Oriente: na China, até ao século XX, no Japão, entre os séculos III e XVI, na Coreia, na Península Árabe, desde os tempos bíblicos... A guerra civil americana, travada sobre as questões relacionadas com a abolição da escravatura, levou 600 milhares de vidas, valor este superior ao total que este país perdeu nas duas guerras mundiais.

Enquanto nos Estados Unidos o enfoque é nos monumentos que glorificam as ações e intenções da Confederação separatista, na Europa, que reforçou a instituição da escravatura na América (na altura já praticada entre os nativos norte-americanos), estão a ser sinalizadas e contestadas, para além das personalidades manifestamente associadas a esta prática, também as figuras como Churchill, Cecil Rhodes, e os famosos exploradores, tais como Colombo, Livingstone e Stanley (África central). Mas também Victor Hugo, Gandhi, Baden-Powell (fundador do escotismo), e até Júlio César. Este tipo de movimento-onda não é único na história: no séc. IV, na altura do imperador romano Constantino, cerca de 25 estátuas de imperadores antigos foram removidas da vista pública; no séc. XVI, a multidão protestante destruiu inúmeras preciosidades da arte e da decoração católica, pela Europa fora.

Será que destruição é destruição e o vandalismo é vandalismo quando surgem em reação a séculos de perguntas sem respostas? Por outro lado, será que expurgar todos os nomes e atos imorais da história vai alterar o rumo do nosso futuro? Será que a condenação da memória vai trazer progresso social? Provavelmente não.

Não se pode afirmar que a destruição é sempre justificada, será sempre necessário constatar quem e porque está a destruir. Do mesmo modo, não se pode rasurar ou negar o passado, pois isso significaria não se ter aprendido nada com ele. Prova: apesar de, nos últimos cinco anos, terem sido removidos 114 monumentos da Confederação sulista nos EUA, não houve praticamente qualquer diminuição da divisão racial e política nessa parte do país.

Porque será que algumas democracias têm problema em abordar a sua história de uma maneira transparente e aberta? Porque será que continuamos a ter um relacionamento complexo com os princípios de igualdade, consagrados nas constituições, mas nem sempre manifestados na realidade?

A resposta, de certeza, não chegará através da polarização, radicalização e extremismo, mas sim através da inclusão num diálogo baseado em consenso. Se os eventos que estamos a testemunhar representarem o início deste processo, não serão em vão, tal como não foram as remoções da simbologia Nazi na Alemanha pós-guerra ou das estátuas de Lenine após a Queda do Muro. Se a destruição for o seu próprio fim, significa que não aprendemos nada e continuamos a repetir os nossos erros.

Muitas cidades estão a decidir guardar as estátuas contestadas fora da vista pública e das controvérsias, pelo menos nos próximos tempos. O tempo necessário até que comecemos a tirá-las da naftalina será o melhor indicador da nossa maturidade civilizacional para as enfrentar, comentar e contextualizar. Só assim é que temos um futuro único.

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