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Coronavírus entra na agenda política do Irão

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O coronavírus entrou na agenda política do Irão, expondo as divisões cada vez maiores entre os blocos conservador e ultra, de um lado, contra os setores reformista e moderado.

As eleições legislativas de 21 de fevereiro tiveram o resultado há muito previsto, e que foi a retumbante vitória de conservadores e ultras, cujos candidatos praticamente concorreram sozinhos devido ao afastamento prévio de milhares de nomes de reformistas e moderados pelo órgão de tutela do regime teocrático iraniano, o Conselho Guardião.

Aproveitando a maré da vitória, conservadores e ultras viraram-se para o único órgão político que ainda escapa ao seu controlo, a Presidência da República, onde o moderado Hassan Rohani tenta chegar ao fim do seu mandato, previsto para maio de 2021.

Nesta guerra intestina, o Majlis (Parlamento) foi o primeiro a cair para as mãos de conservadores e ultras em eleições marcadas, nos dias anteriores à ida às urnas, pela entrada em cena do novo coronavírus Covid-19.

O primeiro a destacar a importância do coronavírus foi o Guia Supremo ‘ayatollah’ Ali Khamenei que, ainda sem se saberem resultados da afluência dos eleitores, rapidamente encontrou uma justificação para o que se já esperava poder vir a ser um aumento substancial da abstenção.

Dois dias após a votação, quando ainda se contavam os votos, Ali Khamenei acusou a imprensa estrangeira de ter posto em prática um “maquiavélico plano” para desencorajar os iranianos de votarem.

“A propaganda começou há alguns meses e intensificou-se com a aproximação das eleições e nos dois últimos dias [antes do escrutínio] com o pretexto de uma doença e de um vírus”, declarou Khamenei, na sua página oficial na Internet.

O mote estava dado e se a gestão da crise do coronavírus nos primeiros momentos revelou falta de preparação, o pretexto alegado por Ali Khamenei foi aproveitado pelos ultras.

Registe-se que a primeira referência oficial no Irão à existência de casos surgiu dois dias antes da votação.

Ou seja, no dia 19 é anunciado que havia dois mortos na cidade santa de Qom mas na véspera, dia 18, quando o mundo já se debatia com a propagação do Covid-19 a partir da China, o Irão não admitia qualquer caso no seu território.

Aproveitando a boleia retórica de Al Khamenei, o deputado ultraconservador Ahmad Farahani, eleito justamente pela província de Qom, acusou o governo, leia-se Hassan Rohani, de mentir ao país ao não admitir a existência de 50 mortos na cidade santa.

A resposta veio do vice-ministro da Saúde, Iraj Harirtchi, que além de negar “categoricamente” a alegação de Farahani, apostou a sua carreira política.

“Peço ao nosso irmão que declara esse número de 50 mortos que nos forneça a lista dos respetivos nomes. Se os mortos em Qom forem metade ou um quarto desse número, demito-me”, assegurou o vice-ministro da Saúde.

Na verdade, a primeira baixa desta “guerra” de números foi o próprio vice-ministro, mas por um motivo mais trivial: ele próprio foi infetado pelo coronavírus.

Mas mais do que uma “guerra” de números, é uma “guerra” de influências que se trava no Irão e em que o coronavírus serve de arma de arremesso para multiplicar os problemas que Hassan Rohani já enfrenta.

No plano político, continua sem dar resposta às exigências de mais reformas sociais que a partir de novembro de 2019 desceram às ruas de Teerão e de 29 das 32 províncias do país sob a forma de manifestações populares, reprimidas sem apelo nem agravo e que deixaram um rasto indeterminado de mortos.

A Amnistia Internacional diz que foram 300, os Estados Unidos alegaram terem sido 1.500 e o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos falou em 7 mil detenções.

O regime não referiu quaisquer números.

Com as eleições de 21 de fevereiro, Rohani perdeu o apoio que mantinha no parlamento e, com a entrada do coronavírus em força no país, que apresenta, depois da China, o maior número de mortos: nesta sexta-feira tinha registados 34 mortes e 388 casos, o seu governo fica mais exposto.

O mandato do Presidente termina em 2021 mas Hassan Rohani corre o risco de não o cumprir se até lá substituir, pelo menos, mais dois ministros.

A Constituição iraniana obriga o Presidente, que é também chefe do Governo, a pedir um voto de confiança ao Parlamento caso substitua metade dos ministros.

Hassan Rohani já substituiu oito e o seu governo tem 19.

Daí que os blocos conservador e ultra tenham apontado as críticas à atuação do Ministério da Saúde na gestão da crise.

Outra razão por que se pode dizer que o coronavírus entrou na agenda política iraniana é que ao falar-se do tema se desviam as atenções do rotundo fracasso que constituiu a afluência dos eleitores.

A abstenção, de 57%, foi a mais elevada de sempre desde que a Revolução Islâmica derrubou a dinastia Pahlavi, em 1979.

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