Funchal, quo vadis?
A resposta aos desafios da mobilidade no Funchal exige, cada vez mais, um olhar integrado e cooperativo
O Funchal é hoje, mais do que nunca, um ponto turístico de referência do qual todos os funchalenses beneficiam, com os devidos defeitos e virtudes. É uma cidade pulsante, feita de ritmos humanos entrelaçados – de vidas que se cruzam nas encostas íngremes, nas praças de memória antiga, nos bairros onde se sonha em voz baixa e nas artérias centrais onde o tempo parece correr com outros compassos.
Estamos em ano de autárquicas, e isso convoca a uma reflexão sobre que futuro queremos para uma cidade com um potencial eminentemente cosmopolita, que se tem afirmado convictamente como um ponto turístico de referência, onde reina uma beleza natural quase hipnótica, mas também uma vitalidade urbana que pulsa entre a tradição e a renovação. Uma cidade onde a hospitalidade não é apenas um traço cultural, mas uma identidade profundamente enraizada – e onde o desafio, agora, é garantir que o crescimento não se traduz em exclusão, que o prestígio externo não obscurece as fragilidades internas, e que o futuro urbano não se constrói à margem dos que nele habitam. Refletir sobre o Funchal de amanhã implica repensar o equilíbrio entre quem visita e quem permanece, entre quem contempla e quem constrói, entre a cidade que mostramos ao Mundo e a que devemos a quem cá vive.
É bom que nessa reflexão não nos esqueçamos dos jovens. A juventude é tida como a garantia do amanhã, ainda que seja sistematicamente desprezada no dia de hoje. Dizem-nos que em nós acreditam, mas deixam-nos à porta das decisões, como quem teme o fulgor de quem ainda sonha.
Haverá certamente, neste verão autárquico, quem fale da juventude com o entusiamo próprio do ambiente eleitoral, e essa deselegância provém sobretudo dos que dependerão da sua vozearia juvenil na campanha, do seu dinamismo nas ruas, da sua vontade mobilizadora e da sua energia transformadora. Acontece que isso está longe, muito longe, do que as gerações mais novas ambicionam. Os jovens não podem ser olhados apenas como acessórios garantidos de campanha, ou um argumento folclórico nos discursos inflamados pelo calor comicial; merecem sim o devido reconhecimento por não serem simplesmente herdeiros do futuro, mas protagonistas do presente. E, acima de tudo, por serem portadores de uma nobre inquietação que assusta e ameaça as estruturas confortavelmente instaladas, que se resguardam num status quo predominantemente secular.
Convenhamos que o Funchal de 2021 é distinto do Funchal de 2025. É certo que Roma e Pavia não se fizeram num só dia, e por isso mesmo há desafios que merecem um trabalho paulatino, sério e de confiança. É certo também que há heranças desgraçadas, ou melhor dizendo, desgraçadas heranças socialistas. Exemplo disso foi a gestão danosa da empresa municipal da FrenteMar Funchal, que em 2020, com 1,7 milhões de euros, de dívida, estava em falência técnica; acontece que, em 2022, a empresa não só foi recuperada, como apresentou um saldo positivo de 100 mil euros. Ou ainda, as contas penhoradas, as dívidas “escondidas”, ou o património hipotecado – contabilizando um prejuízo de 41 milhões de euros nas contas de 2021. Mas mais do que falar do passado, importa pensar e falar no futuro para que esses ecos de outrora não se repitam.
Há várias exigências contemporâneas que merecem ser discutidas. Uma delas é a habitação, um problema internacional, que não conhece ideologias e muito menos soluções milagrosas. Há muito que a discussão se divide entre esquerda e direita; tristes são os que não compreendem que o problema habitacional, com que a esmagadora maioria do mundo se depara, não depende da cor partidária de quem governa – caso contrário, de entre todas as cidades, de esquerda ou direita, com este problema confrontadas, haveria alguma que já tivera explodido de êxtase pela descoberta da pólvora. E, isso, efetivamente, não aconteceu.
Não obstante, existem exemplos passíveis de serem seguidos. O caso da Holanda é um deles. Num estado desesperante em que o problema se encontra é evidente a necessidade do Estado, neste caso – a autarquia –, em assumir responsabilidades perante a incapacidade dos privados de assegurarem um direito elementar e básico que, por sinal, está inserido na Constituição da República Portuguesa. Acresce a esta responsabilidade, um requisito latente da criação, por parte da Câmara, das condições necessárias ao sector privado de desenvolver projetos urbanísticos válidos, solidamente concebidos e de reconhecido valor público. Sem descurar, naturalmente, a valorização das cooperativas de habitação – enquanto modelos alternativos, inclusivos e sustentáveis –, e reconhecendo o papel absolutamente imprescindível da empresa municipal SocioHabita, cuja ação continua a ser determinante na resposta habitacional e na promoção de soluções socialmente justas e territorialmente enraizadas.
Uma das outras exigências prementes é a mobilidade. O Funchal vê-se hoje confrontado com um fluxo de circulação de pessoas elevadíssimo, desde os seus residentes permanentes, passando pelos turistas, e indo até aos vizinhos de concelho que aqui não residem. Olhando para as alterações de um turismo cada vez mais individual – ou seja, menos coletivo – e, com isso, mais disperso nos percursos, mais dependente do transporte privado individual e, consequentemente, maior criação de pressão sobre as vias urbanas, convém planear, estruturar e organizar a cidade de forma a conjugar a massa turística que por aqui passa com aqueles que aqui permanecem toda a vida.
A resposta aos desafios da mobilidade no Funchal exige, cada vez mais, um olhar integrado e cooperativo. A rede de transportes públicos, apesar dos avanços já alcançados, continua a exigir um reforço estrutural para responder com eficácia ao aumento do fluxo de circulação. Para isto, é fundamental aprofundar o trabalho conjunto entre as várias autarquias e o Governo Regional, no sentido de expandir a cobertura e a frequência dos transportes públicos, melhorar as acessibilidades nas zonas de maior densidade populacional e garantir melhores condições na rede viária. A aposta em soluções intermunicipais, com ligações mais fluidas entre concelhos, pode representar uma mudança significativa na forma como nos deslocamos. Isto só será possível se houver capacidade para dotar a rede de transportes públicos de uma reputação verdadeiramente atrativa e viável face ao uso do automóvel particular.
Ficam a faltar variadíssimos domínios de reflexão, nomeadamente a segurança, os espaços verdes e a transição energética, o incentivo a jovens empresários, a condição precária dos sem-abrigo, a educação, a aposta nas tecnologias e no digital, a competitividade fiscal, a importância da economia dinâmica, a capacidade de retenção de investimento público e privado, a valorização artística, cultural e desportiva, e ainda a causa animal.
Num tempo em que as cidades oscilam entre a pressa das decisões imediatas e o silêncio das ausências prolongadas, torna-se essencial cultivar uma clareza cívica e um sentido de ambição comum. O futuro do Funchal exige mais do que gestão – requer visão, sensibilidade e um pacto de exigência com a dignidade humana. Porque só uma cidade que cuida, inclui e ousa transformar será digna da memória que a antecede e da esperança que a projeta. A vitalidade de um território não se mede apenas pelos índices económicos ou pelo prestígio turístico, mas pela forma como ampara os seus – os que sonham, os que resistem, os que constroem. E é nesse horizonte partilhado, baseado na justiça social, que se funda a verdadeira ideia de cidade: um lugar onde viver não seja apenas habitar, mas pertencer.