Crónicas

Uma questão de fé

Eu podia ter perdido a fé, mas era, como sou hoje, consequência de anos de educação católica, de missas e procissões, do facto de ser parente de um bispo, de um frade e de duas freiras.

Nasci numa família católica, é um dado na minha história e é parte de mim. Já não vou à missa e não sou pessoa de fé, não acredito na vida depois da morte e não tenho um Deus a quem pedir seja o que for, nem para me acudir num aperto ou aflição. E também não inventei uma fé só para o que dá jeito, sem as partes que obrigam a sacrifícios e sem que as são difíceis de explicar.

Lembro-me de estar doente e da minha mãe me pedir para ir à missa, para me agarrar a Deus e a Nossa Senhora, que decerto viriam em meu auxílio. Não fui, não me pareceu honesto. Tinham passados anos desde que deixara de ir à missa ao domingo, não me confessava desde adolescente e, sobretudo, perdera a fé. E eu, uma miúda de 23 anos, não podia prometer que, caso ficasse curada, voltaria a ser católica praticante, mais devota, nem que ficaria melhor pessoa.

O Deus omnipresente e omnipotente, aquele que me ensinaram na catequese e nas conversas de família, iria descobrir a jogada. Não seria sequer como um filho pródigo que regressa a casa, era coisa do momento e da aflição, do estilo rezo “agora umas ave-marias e uns pai-nossos e depois volta tudo o que era”. A minha mãe ainda me disse que Deus perdoa a todos, aceita todos e tolera os nossos pecados, mas não fui.

Eu podia ter perdido a fé, mas era, como sou hoje, consequência de anos de educação católica, de missas e procissões, do facto de ser parente de um bispo, de um frade e de duas freiras. E tudo isso entrou mais fundo e além do vestido da primeira comunhão e do fato do crisma. O primeiro foi-me imposto e eu não gostei, o segundo fui eu que escolhi e ninguém gostou, mas estava linda, com o cabelo lustroso e arranjado, a ler uma leitura no altar.

Foram anos a ouvir missas e sermões, a ler as histórias da Bíblia, a viver a alegria do Natal e a atmosfera da Semana Santa, a profunda tristeza que se abatia sobre nós com a televisão a dar concertos de música clássica e a procissão de Sexta-Feira Santa, terrível e tétrica. Deus era bom, perdoava a todos e ainda assim deixava-nos entregues ao mundo, à mercê de desgraças e do mal. Lembro-me de como me confundia o facto de Jesus não ter usado os poderes divinos para se livrar daquele suplício da paixão que, todos os anos, se lia na igreja.

E de como tudo o que se dizia era trágico, mas nós ouvíamos até ao fim, ali ao lado da tia Teresa e entre mulheres de meia idade vestidas de luto, verdadeiramente comovidas e alteradas por aquele tormento, pela solidão e desespero do que se relatava. Apesar das férias e das amêndoas, o melhor daquela semana, era chegar ao Domingo de Páscoa para arrumar aquele ambiente pesado, de silêncio e culpa. É que pelo meio, entre celebrações, lava-pés e sábado de Aleluia, tínhamos de pensar nos pecados para os contar ao padre no dia das confissões.

Foi ai, entre missas e procissões, que aprendi como a vida pode ser trágica, que ser bom não nos livra de nada, nem sequer ser devoto ou crente, mas, mais importante ainda, foi por essa altura que comecei a ter consciência. De mim, dos outros, de que há coisas que não se fazem e quando se fazem estão erradas, que é melhor viver de consciência tranquila do que com culpa e remorsos, que há bem e mal, que podemos escolher entre um e outro, mesmo depois de ter perdido a fé.

Podemos escolher entre usar o telefone para ligar o 112 e chamar socorro para um local de acidente ou usar para tirar fotografias às vítimas, será sempre uma questão de consciência.