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Crónicas

Silêncio e tanta gente

Fátima em tempos de covid foi a manifestação eclesial de como a “peregrinatio” pode não ter forma e visibilidade física, mas nem por isso oculta a religiosidade profunda que a anima.

Ser peregrino — do latim “peregrinu”, aquele que atravessa uma terra estranha — é algo constituinte da condição humana e, em maior profundidade, da opção crente. Na existência como na fé, o homem está em viagem permanente, com os olhos postos no que, sem ver ainda, espera alcançar; só caminhando ele faz o caminho, na demanda de uma resposta que, em esperança, vislumbra de sentido pleno, capaz de sarar os rasgões da vida e de unificar de novo o que a existência quebrou. O roteiro faz o romeiro, mas o impulso da viagem começa muito antes: um sinal, uma pergunta, um apelo, um estremecimento qualquer, um insidioso porquê que não encontra respostas; só o pôr-se a caminho, e contar os passos até o impossível da dor, será capaz de aquietar a busca sem fim, mesmo se a quietude apaziguadora do final da caminhada pode vir a ser o ponto de partida de uma nova peregrinação...

À primeira vista, poderíamos invocar Pascal: “O silêncio infinito dos espaços me apavora”. Mas não aqui. O inédito foi ver e partilhar Fátima como em 100 anos tal nunca fora vivido: a nudez do imenso espaço do Santuário, pontilhado de mil luzes na noite do dia 12, ou revestido de nevoeiro e silêncio no dia 13, como se ali se prolongasse também o aparente vazio daquela Semana Santa em Roma, quando o coração da Igreja mais do que nunca pulsava em súplica de amor e de esperança por uma humanidade decaída, afogada em dor e morte, mas com os olhos postos no dom maior da Páscoa. E por aqui se pode chegar à compreensão possível — não apenas a da razão, mas sobretudo a do coração ¬¬— do sentido do acontecimento: no seu caráter inédito e aparentemente desolador, aquela era a imensidão de um espaço povoado de presença, habitado pela sintonia em comunhão orante dos milhares que lá não estavam, mas que uma fé comum foi capaz de ligar numa epifania maior. Assim também se cumpria a mensagem de Fátima: é sempre para o Filho que a Mãe aponta, e aquilo de que aqui se fala é sempre maior do que este espaço pode conter!

Na verdade, todo o legado de Fátima — hoje um lugar de humanidade e de cultura, que só o turvo olho jacobino ainda despreza — constitui uma proposta incontornável de mediação evangelizadora. A Igreja portuguesa revelou grande agilidade no lidar com os ditames da contingência. O silêncio viral que se abateu também sobre os espaços sagrados, tornou-se, afinal, um silêncio habitado por novas experiências de vida verdadeira.

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