Crónicas

Seguir caminho

Sei que os jovens de hoje têm uma vida diferente, toda a informação à disposição no telemóvel, pais atenciosos e muito próximos, que retiram obstáculos, limpam o caminho

Dois meses mudaram-me para sempre. Sei que parece dramático, hoje parece estranho dizer que fazer a mala para ir estudar numa cidade diferente não custa assim tanto. Lisboa é ali mesmo, a uma hora e meia de viagem e é o mesmo país, a mesma língua, as mesmas regras, mas isso é agora, neste tempo em que se tiram todas as dúvidas no Google. Não há sítio a que se vá sem antes ver umas fotografias, vemos a rua, sabemos tudo, conforta-nos reconhecer um prédio e identificar uma praça das imagens de satélite.

Não existem mergulhos no desconhecido, o avião não despeja jovens de 18 anos que nem sabem o que é o metropolitano como acontecia com a maioria de nós naqueles anos. Nós vínhamos como uma mala e uns embrulhos, um endereço no bolso e a velha máxima “de que quem tem boca vai a Roma”. Em dois meses, quando chegávamos para as primeiras férias, parecíamos outros, tínhamos outra maneira de vestir, uma maneira nova de pensar e, sobretudo, outra perspectiva sobre o tamanho mundo.

Pelo que oiço, esta transformação já não acorre. Os pais correm a instalar os filhos, tratam de tudo, da casa, da comida, estão por perto quando há exames e frequências. Não foi só o Google que mudou isto tudo, as relações entre pais e filhos são diferentes, mais próximas e cúmplices. Nós não partilhávamos confidências com o pai ou com a mãe. Do que me lembro, nós tínhamos segredos, uma vida paralela que começava no liceu e se intensificava na faculdade. Os nossos amigos, as nossas notas e os nossos desastres académicos eram um assunto nosso do qual só se prestava contas no fim do ano.

E poucas explicações sobre os namorados, sobre estarmos apaixonados e nenhum comentário sobre as vezes que nos partiam o coração. Era mais um segredo, chorar às escondidas. Pelo menos, eu fazia isso, tinha a certeza que contar e partilhar detalhes da dor ou da intimidade seria mais penoso, provocaria um terramoto e convocaria todos os preconceitos sobre como devia uma mulher comportar-se. Os pais viviam no mundo diferente do nosso no qual não havia a possibilidade do namorado ficar a dormir no mesmo quarto.

Este conceito do pai como melhor amigo, a mãe que sabe tudo da filha não existia. A minha mãe era a minha mãe, uma senhora fantástica, de quem tenho saudades todos os dias, mas que sabia da minha existência em Lisboa o essencial. Lembro-me que ligava uma vez por semana para casa de uma cabine pública, falava das notas, pedia dinheiro, mandava beijos a todos. Quando desligava, corria a abraçar a minha vida e a primeira experiência como adulta, longe de casa. Cada segundo era meu e eu passava-o como entendia: nas aulas, a estudar, a ler um livro, no cinema, a namorar ou passear.

Sei que os jovens de hoje têm uma vida diferente, toda a informação à disposição no telemóvel, pais atenciosos e muito próximos, que retiram obstáculos, limpam o caminho, mas continuo a acreditar que, mais tarde ou mais cedo, todos querem seguir o seu caminho, ser adultos, independentes, falhar e acertar, amar e chorar por amor. E que isso acontecerá, como aconteceu comigo e com todos os outros, antes e depois. Não será daquela forma drástica, mas eu não sabia bem o que era o metropolitano e não nunca tinha visto um avião por dentro.