Crónicas

Quantos pobres são precisos para fazer um rico?

Um duplo desafio abriu o meu janeiro de 2020: iniciar uma colaboração com o Diário de Notícias da Madeira e titular essa colaboração. Um começo sem começo, porque fiz-me dona de um título da minha escritora de eleição, Clarice Lispector, que em 1967 escreveu uma pequena crónica com o título de «Talvez Assim Seja». Agrada-me esta contradição nos termos: a dúvida (sempre ela) a anteceder uma certeza ou uma prece. Talvez. Assim seja.

No debate mensal de dezembro de 2019, o Governo Regional congratulou-se pelo facto de a economia regional registar uma evolução nos últimos 75 meses, ou seja, há sensivelmente seis anos. Este crescimento foi amplamente enfatizado pelo Secretário Regional da Economia, verdadeiramente impressionado pelos indicadores por que não deu conta nos últimos cinco anos e nove meses.

Por outro lado, quando questionado relativamente ao facto de termos uma taxa de risco de pobreza, após transferências sociais, situada nos 27,8% (a média nacional é de 17,2%), o Presidente do Governo Regional desvalorizou os dados alegando que a taxa de risco não é pobreza efetiva. Para que se perceba o que está em causa quando se fala de taxa de risco de pobreza, esta diz respeito à população residente que tem rendimentos inferiores à linha de pobreza. Falamos de pessoas cujo rendimento total, por adulto, as mantém abaixo do que é necessário para uma vida condigna.

No penúltimo dia de dezembro de 2019 a Direção Regional de Estatística da Madeira publicou o Anuário Estatístico relativo a 2018, que nos dá conta de que num universo de quase 254 mil pessoas, 31,9% da população madeirense estava em risco de pobreza e exclusão social. São cerca de 81 mil pessoas. Isto significa que estas pessoas estavam numa situação de enorme fragilidade e risco de exclusão social. Se pensarmos em termos de agregados familiares, este risco de pobreza e exclusão social implica, muitas vezes, condições de vida muito precárias, desequilíbrios alimentares, desinvestimento na educação e na saúde. Implica hipotecar o futuro de muitas crianças e adolescentes em nome da sobrevivência no presente.

Verdadeiramente assustador.

Ou talvez não, porque temos uma economia que cresce há 75 meses seguidos. Não me interpretem mal, obviamente que indicadores económicos positivos são importantes. Mas isso não significa que se desvalorize os números que enumerei mais acima e que nos dizem que uma boa parte da nossa população residente está financeiramente estrangulada. Facto é que os dados disponibilizados pelo INE dizem-nos que a taxa de risco de pobreza após transferências sociais, referente a 2019, é ligeiramente superior à de 2018 (27,8% e 27,5%, respetivamente).

De salientar também que os indicadores de desigualdade referentes a 2018 dizem-nos que os rendimentos dos 20% mais ricos são seis vezes os rendimentos dos 20% mais pobres. Somos a segunda região do país com maior desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres. Isto significa que apesar da Região crescer economicamente, a riqueza que advém desse crescimento continua a ser mal distribuída.

Por tudo isto, o combate às desigualdades, à pobreza e à exclusão social deveria ser uma prioridade para o Governo Regional. Mas como percebemos pela argumentação do Presidente do Governo Regional, não é. Taxa de risco de pobreza não é pobreza efetiva.

E, no entanto, recordo a visita que fiz em agosto à Associação Monte de Amigos, onde ouvi de viva voz os relatos de como estes indicadores de risco de pobreza significam vidas, pessoas, famílias; significam futuros com horizontes muito reduzidos face a um presente esmagador. Como descansar com as declarações do Sr. Presidente quando ainda ecoa o relato de uma jovem Mãe que luta todos os dias para garantir uma alimentação equilibrada ao filho de quase três anos, pagar a mensalidade da creche para poder trabalhar e ainda assim fazê-lo sonhar com os brinquedos a que todas as crianças deviam ter direito? Quando o choro que lhe cortava as palavras não me sai da memória?

Desde 1974 que Sérgio Godinho canta para quem quiser ouvir que

«Só há liberdade a sério quando houver

A Paz, o Pão

Habitação

Saúde, Educação»

Este repto está plasmado, de forma menos poética, na nossa Constituição, que muitos/as acusam de ser demasiado à esquerda. Honestamente, há alguém que não concorde com a importância de qualquer um destes fatores? Há alguém que considere exagerado o direito a uma Habitação condigna, a uma Alimentação equilibrada? Que considere excessivo o direito à Saúde e a uma Educação que permita aspirar a mais do que escapar por um triz aos encargos mensais? Viver com o mínimo de dignidade é um luxo?

Comecei esta crónica com a confissão da minha predileção pela escritora brasileira Clarice Lispector. Mas o subtítulo da crónica de hoje devo-o a Almeida Garrett e ao seu Viagens na Minha Terra (datado de 1846): «E eu pergunto aos economistas, políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado (...) à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?»

Perante os números que conhecemos pergunto: quantos pobres são precisos para uma Região apresentar um crescimento económico há 75 meses?