Crónicas

Os últimos dias da infância

A candidatura fazia-se numa casa velha na Rua dos Ilhéus, uma daquelas casas antigas, com alpendre, tectos trabalhados, um jardim de inverno e árvores frondosas. O senhor que nos atendia também não era novo, nem muito simpático, mas lá nos explicava como preencher os papéis sem enganos. Os enganos podiam valer um desgosto e todos conhecíamos as histórias do primo de um primo de um amigo que queria ir para Direito em Coimbra e acabara em Lisboa por ter trocado um número no código do curso.

Lembro-me que comprei os impressos em triplicado e verifiquei cada código umas 50 vezes antes de os ir entregar ao Gabinete de Ingresso ao Ensino Superior naquele fim de Julho de 1989. Os seis meses que se seguiram foram de sobressalto e expectativa. Os meus sonhos e planos – os meus e daquela geração de candidatos – caíram a meio de uma greve e ficaram reféns por longos meses. E, enquanto professores e Ministério da Educação se digladiavam sem trégua à vista, uma parte daquela massa de miúdos de 18 anos foi fazer cursos do Fundo Social Europeu.

A outra parte ficou à espera numa espécie de férias grandes que duraram o Verão e se arrastaram até depois do Ano Novo. Matava-se o tempo a ler, no cinema e a ver televisão, mas os filmes demoravam semanas em cartaz nas salas e não se podia esperar muito de um só canal. No fim de Setembro, num dia de chuva, fui fazer fila nas candidaturas para aulas e também dei o nome para uma rádio local, mas ninguém me chamou. De Lisboa, não chegavam notícias de acordo, nem do fim da greve e não se podia fazer mais do que esperar.

Eu tentei tirar um curso de computadores, de uns que não tinham professor, mas, além da desculpa para sair de casa, não aprendi nada de relevante. E, em casa, a minha mãe, mesmo sem grande entusiasmo, poupava para o caso de ser preciso comprar passagem de avião e umas roupas para o Inverno de Lisboa. E as minhas tias riam-se, ainda incrédulas, não estavam a ver-me sair de casa sem conhecer vivalma na cidade que me deveria acolher nos anos do curso. “Não tens medo?”, mas eu tinha enterrado o medo e começara a cortar a ligação com a infância, com o que tinha sido a minha vida até ali.

A minha vida como adulta começava ali, naquele ano e naquela espera. Era a oportunidade para passar as tardes a ouvir as conversas entre a minha tia Alice e a minha mãe enquanto bordavam, para o pequeno almoço com pão fresco e ovos, para os domingos à tarde em casa do meu avô, com a minha Teresa a tirar da gaveta os chocolates que guardava para o meu irmão e para mim. Ou para o meu pai trazer na mão o pintainho acabado de nascer e o meu irmão me atirar com as almofadas do sofá. E nunca mais seria assim, tão seguro e tão feliz como só a infância consegue ser.