Crónicas

Obrigado Pai

Sempre gostei de estar com pessoas mais velhas e talvez por isso o meu pai levava-me a tudo o lado

Se estivesse entre nós o meu pai faria hoje 93 anos, no dia em que o seu ídolo político Freitas do Amaral vai a enterrar. Ironias do destino. Em dia de reflexão para as eleições e em que, também, se assinala a implantação da República, decidi lembrar o meu progenitor porque sem ele eu, provavelmente, não teria enveredado por estas coisas da política. Costumo dizer que andava, ainda, de calça curta e já pregava cartazes e pintava paredes. Mas este bichinho vem de antes do 25 de abril, quando ainda criança fui com ele a uma sessão da oposição ali em frente à Casa da Luz, muito perto da sede do Marítimo, o clube onde ele foi dirigente e pelo qual tinha uma tal paixão que acabou proibido pelo médico de ver os jogos. Passei muitas noites no clube, jogando bilhar e ouvindo estórias do glorioso, em particular as peripécias da conquista do Campeonato de 1926, o ano em que curiosamente o meu pai nasceu, e da inesquecível campanha de África, onde a equipa brilhou a grande nível. Nessa reunião da oposição que a ditadura consentia, na campanha para as eleições de 1973, ouvi pela primeira vez falar de Liberdades e de Democracia. Já antes, a minha Família tinha sido confrontada com a possibilidade de o meu irmão mais velho ser mobilizado para a guerra no Ultramar e isso marcou-nos muito porque os relatos eram terríveis. À mesa, discutiam-se os assuntos da atualidade e da política, sem grandes secretismos, até porque estávamos escudados no facto de termos pessoas próximas que eram agentes do regime.

Sempre gostei de estar com pessoas mais velhas e talvez por isso o meu pai levava-me a tudo o lado, onde era permitido entrarem crianças e adolescentes. Das Feiras do Marítimo às Quermesses do Nacional, das peladinhas no Liceu aos grandes jogos nos Barreiros, das sessões no Cinema João Jardim aos espetáculos e jogos na antiga Quinta Vigia, dos leilões do Ferrolho em São Paulo às Festas de casamento que decorava, lá fiz o meu percurso de adolescente sempre atrás do meu pai que começou como empregado de balcão e acabou comerciante. Tenho um enorme orgulho na forma como esteve na vida e como procurou educar os filhos, sacrificando-se para que nada nos faltasse.

Que saudades dos sábados à tarde passados na Casa Tavares a vê-lo fazer as melhores montras do comércio da cidade que, invariavelmente, ganhavam os concursos realizados pela Delegação de Turismo, das conversas no escritório dos irmãos verde- rubros Adelino e Alexandre Rodrigues, das noites e tardes de leilões no Chagas, dos negócios nas casas de antiguidades, dos passeios domingueiros até à Camacha e ao Santo da Serra para ver televisão, das tertúlias do Café Funchal e do Apolo e das idas aos primeiros Congressos partidários em Lisboa e no Porto.

Lembro-me de como ele se envolveu no movimento liderado pelo João Carlos Abreu para salvar a Zona Velha da Cidade e travar os planos de demolição das casas do local para a passagem da avenida Salazar e de como, com poucos meios financeiros, investiu numa loja de antiguidades e apoiou a abertura restaurantes que fazem parte da história do berço do Funchal. Foi aqui que ele me gerou, num local onde se cruzavam senhores da terra e pescadores, bomboteiros e bordadeiras, comerciantes e contrabandistas, mães de família e mulheres de má sorte, poetas e jogadores, artistas e braçais, loucos e visionários, turistas e emigrantes, ricos e pobres, patrões e trabalhadores. Ele e eu somos um produto deste pequeno mundo dentro da cidade, naquele Largo do Corpo Santo onde tudo se passava.

Recordo-me, também, de como ele me defendia, intransigentemente, quando no jornalismo ou na política, alguém era mais agressivo comigo e da sua enorme capacidade de argumentação que ainda hoje me provoca inveja. Ouvi-o a discutir assuntos com políticos de gabarito e não lhes ficava atrás. Assisti a discussões sobre factos históricos com professores que me deixavam boquiaberto. Tinha várias paixões, mas nada que se comparasse com a sua apetência pelo que se tinha passado na Segunda Guerra Mundial, que viveu na juventude. Por vezes era corajoso e rígido como um soldado na frente de batalha, quando falhávamos, outras vezes mostrava todo o seu amor, prescindindo de coisas para nos oferecer as Levis ou as Adidas que ambicionávamos. Era o meu ídolo, mas nunca lhe aprendi aquele jeito invejável que tinha para o negócio. Onde se metia era certo que não saía a perder. No entanto, fui o único que lhe seguiu as pisadas políticas e clubísticas e por isso ele tinha orgulho em mim, sem nunca descurar os meus irmãos que já partiram e que ele também adorava. O meu pai chamava-se Raul Rodrigues e faria hoje 93 anos. Obrigado Pai.