Crónicas

O contador não tem maneira de parar

A seguir a um dia vem outro e, agora volto a olhar para a frente, a tentar projectar-me para daqui a 10, 20, 30 anos e isso assusta, envelhecer assusta muito

Lembro-me de ter oito anos e fazer contas para ver que idade teria em 2021, lembro-me de ter olhado para a minha mãe, de ter percebido que seria mais velha do que ela era. A minha mãe parecia o que era, uma mulher de quarenta e tal, magra, com rugas e óculos de armação grossa, o cabelo pintado. Nós até gostávamos mais de vê-la grisalha e tínhamos dificuldade em encontrar semelhanças com a morena de semblante carregado que aparecia nas fotografias que o meu pai guardava na caixa das ferramentas.

Algures, muitos anos antes de termos nascido, tinha sido nova e bonita, mas o tempo passara, tinha trazido na corrente o envelhecimento e a minha mãe pintava o cabelo e usava Tokalon para disfarçar os sinais da idade. Fazia os mínimos, as mulheres são sempre vaidosas, olham-se ao espelho, esperam sempre ficar melhor mesmo que não seja já possível esconder os 40 ou os 50. A minha mãe era assim, lembro-me de a ver a bordar à janela da sala, sem complexos perante a meia idade.

Os programas da rádio faziam companhia tarde adentro, enquanto eu somava números atrás de números para saber quantos anos teria no ano 2000, o futuro mais futuro que podia existir para as crianças do fim dos anos 70. Por essa altura teríamos todos embarcado numa nave especial, mas lembro-me de pensar como seria eu. Eu aos 20, aos 30, aos 40 e com a idade da minha mãe. Seria bonita, teria óculos grossos? À frente do espelho do guarda-fatos experimentava os sapatos de salto e pintava os lábios com os restos de batôm que a minha prima Ana me dava e projectava uma mulher elegante como aquelas das revistas.

Ia ser bonita, cientista e artista e todas as profissões em que as mulheres se estreavam nesse Portugal pós-revolucionário. Havia de ter um jipe, um apartamento como o das telenovelas e ia viajar mundo fora, dormir em Nova Iorque e tirar fotografias ao lado do Big Ben. O futuro parecia luminoso, aberto a todas as possibilidades antes de me tornar como a minha mãe, uma senhora que pintava o cabelo e usava Tokalon para disfarçar os sinais da idade. E de facto o tempo acabou por trazer o futuro e o futuro depressa se transformou em passado.

O contador não tem forma de parar, a seguir a um dia vem outro e, agora, que sou mais velha do que a minha mãe era quando eu tinha oito anos volto a olhar para a frente, a tentar projectar-me para daqui a 10, 20, 30 anos e isso assusta, envelhecer assusta muito. Perde-se energia, brilho, muitas vezes a lucidez e a noção do mundo em que se vive. A pergunta está lá, ronda-me, chegarei a velha? Uma amiga, das que encontro a fazer tempo nas lojas de roupa, disse-me que tem a certeza que sim, que será uma velha, consegue até ver-se lá, na velhice, enrugada e de cabelo muito branco.

Não são as rugas, nem o cabelo branco, não é isso que me dá medo quando olho para a frente. É a solidão, o pavor que causa ficar por aqui, num mundo onde serei obsoleta, onde ninguém quererá ouvir falar do tempo dos telefones fixos, da televisão a preto é branco ou até do tempo antes disso, em que as casas e as pessoas não tinham televisores ou telefones e viviam. Não haverá quem perca energia ou um instante para olhar as fotografias antigas, aquelas que provarão que, um dia algures entre o século XX e o XXI, fui uma morena de semblante fechado, nova e cheia de planos.