Crónicas

O cão

Quando arrumei as malas e mudei de casa, o Tonecas fazia companhia ao Timóteo

O meu pai contou-me quando estavámos a sair de mais de mais um exame, ainda meio atordoado com os zunidos da ressonância às costas. Ali, no caminho entre o hospital e o café, parou no passeio e apontou para o braço para dar a ideia do tamanho: “trouxeram-me um cachorrinho branquinho, todo peludo”. E, por um instante, nasceu-lhe um sorriso, um sorriso que o fez esquecer quase tudo: a quimioterapia e a dor mesmo a meio das costas.

E, no café, enquanto comia uma queijada, não falou de outra coisa a não ser do cão acabado de chegar a quem deu o nome de Tonecas, o mesmo que deu a outros dois que, por anos, correram atrás de gatos e guardaram a casa. O primeiro trouxe-me a Raquel, era para ser o irmão peludo, mas, no fim, fiquei com o último da ninhada, de pêlo rente e rabo curto. Não era bonito, a barriga tocava no chão e chorou noites a fio até se fazer ao frio que desce pelo ribeiro.

Quando arrumei as malas e mudei de casa, o Tonecas fazia companhia ao Timóteo e ambos perseguiam os gatos que se aventuravam pela fazenda ou cometiam a imprudência de desafiar a velocidade do cão de patas curtas e mistura de muitas raças que a Raquel jurava ser um cruzamento malsucedido de perdigueiro. O que, no caso, nunca fez diferença ao meu pai. O Tonecas tinha mau feitio e isso no Laranjal de há 25 anos era uma virtude.

E lembro-me bem do desalento do meu pai quando, numa dessas perseguições, o cão se atirou de cabeça atrás de um gato e caiu desamparado. Foi numa véspera de Natal e, uns meses depois, chegava a casa um outro, também de pernas curtas, mas pêlo comprido e dois dentes de fora. Não era bonito, mas foi um companheiro leal dos primeiros anos da reforma e cúmplice da vida que o meu pai reconstruiu ao lado da minha madrasta.

Envelheceram juntos. O meu pai, a minha madrasta e o Tonecas II começaram, quase ao mesmo tempo, a sentir os males da idade, a subir devagar os degraus da entrada, acometidos por dores e a fraquejar das pernas. A minha madrasta foi-se em Agosto, o cão arrastou-se mais uns tempos pelo quintal, incapaz de abandonar o meu pai em tardes demasiado solitárias. A custo, arranjava maneira de se enrolar no quintal, pois um cão não larga o dono. No fim, o meu pai pediu-me que tirasse uma fotografia, queria lembrar. Acho que quis guardar os anos em que foram todos felizes.

E as tardes são mesmo solitárias, as dores nas costas não ajudam e a quimioterapia fez estragos. Não sei se foi por isso, não sei se foi por ter sido sempre assim. A cada cão que parte, há um que chega para guardar a casa e deitar-se ali ao lado, que olha nos olhos e salta de alegria assim que o avista a descer do autocarro. A diferença é que este Tonecas é bonito e o meu pai não quer que guarde a casa ou que corra atrás de gatos. Do meu pai terá o carinho que os velhos dedicam ao que dá sentido aos seus dias.