Crónicas

O calor de Dezembro

Eu, que nunca fui boa em tecnologias, costumava pensar que, ao menos, percebia bem do mundo real, deste onde o frio e o calor são algo que se sente, que faz pele de galinha ou faz transpirar

Ocalor pesou-me na roupa e nos sapatos, senti a blusa a colar às costas e os pés inchados, não era tempo para Dezembro e pensei nos sobretudos das montras, assim não há quem os compre. O dia mais quente do mês, o dia mais quente em 154 anos, apanhou-me às voltas na cidade e trouxe-me aquela impressão de que cada vez percebo menos o mundo, de que faltará pouco até ser como aqueles telefones que não aceitam actualizações.

Há uma parte do mundo que me é estranha, acontece algures nos computadores, em servidores geridos por mágicos com idade de serem meus filhos. São eles que nos mantêm ligados, que garantem a rede para aceder ao Google e consultar os horários dos autocarros, que ligam o GPS quando vou andar a pé e colocam publicidade de aspiradores e receitas de bolos quando entro no Facebook.

A parte dos bolos e dos aspiradores era escusada, mas não é isso que torna estes mágicos menos dotados. Há um algoritmo, que junta idade e género, e faz circular esta mistura de culinária, electrodomésticos, signos do Zodíaco, dicas para tratar as dores nas costas e textos a explicar como é fantástico ter mais de 40 anos. Esta parte do mundo que é a Internet reduz-me a isto e escolhe por mim temas que, de facto, não me interessam.

Este lugar que me quer formatar, que insiste que a minha sorte depende do alinhamento de Aquário no céu e de saber umas quantas frases feitas de auto-ajuda, traz-me pouco, é um vazio, onde todos estão sempre, constantemente. Na paragem do autocarro, no restaurante, dentro do autocarro, no concertos. Não sei mais se há quem vá a algum lugar sem tirar uma fotografia ao prato que comeu, ao nascer do sol, ao frio e ao calor, ao artista que toca e ao gato que dorme no sofá. Esta última é uma autocrítica.

Eu, que nunca fui boa em tecnologias, costumava pensar que, ao menos, percebia bem do mundo real, deste onde o frio e o calor são algo que se sente, que faz pele de galinha ou faz transpirar. Embora tenha dado por perdido para sempre o Laranjal da minha infância, sentia-me feliz por saber distinguir as nuvens de vento ou de Leste, por ter guardado conhecimentos simples, coisas de todos os dias e de cada estação do ano. Afinal, não sou mais do que a filha de um pedreiro e de uma bordadeira, a neta um agricultor.

Essa herança era como que a minha magia, o meu super-poder para enfrentar este mundo. Eu teria sempre a memória, mesmo depois do último dos meus partir. Viesse a saudade ou mal maior, seria certo que, em Dezembro, viria um frio, um que sobe pelo ribeiro quando os dias ficam mais curtos e as noites pedem mais um cobertor na cama. Do frio viria a lembrança da Festa e dai todos os pequenos rituais, o cheiros, as músicas, as luzes.

Por um momento seria outra vez a Lina Marta, estaria lá, entre os meus, naqueles anos felizes e o aconchego da memória dar-me-ia forças para um ano. Só não se sei se sou capaz de fazer o mesmo, agora, com estes dias quentes, os mais quentes dos últimos 154 anos. O mundo é cada vez mais um lugar estranho, mas talvez seja apenas eu que estou a envelhecer.