Crónicas

Nenhum inimigo nos conquistou

O verão de 1940 é agitado no Funchal com a chegada de tantos estrangeiros, sobretudo mulheres e crianças de pele branca, olhos claros e cabelos loiros, pois muitos dos homens foram alistados no exército britânico

O terrantez corre-lhe pelas veias e pela primeira vez, nos últimos anos, Evelyn é envolvida por boas sensações. Os últimos tempos não foram fáceis, com o início da guerra, o racionamento de bens, o recrutamento de Peter para o Exército Britânico e a saída forçada de Gibraltar para a Madeira. Tinham dito que passaria de um Rochedo para outro, bem maior, mas hoje ela sente-se no paraíso. Seja pelo vinho de 1900, ou pela simpatia e encanto do anfitrião Luciano, a verdade é que aquele final de tarde de agosto, no pátio das Caves da Madeira Wine, proporcionado pelo cônsul inglês, sabe-lhe a amor e a liberdade. Pela primeira vez não se sente uma refugiada na ilha com saudades da sua terra, mas uma mulher a iniciar uma nova vida.

No início do ano, o Conselho de Guerra reunido de emergência nos subúrbios de Londres, analisa as informações de que Hitler pode virar atenções para a Península Ibérica. Winston Churchill e os militares têm que decidir sobre a evacuação da população de Gibraltar onde o Reino Unido tem uma base estratégica entre o Mediterrâneo e o Atlântico. As opiniões dividem-se e a última palavra cabe ao velho líder que desconfia da posição do caudilho espanhol Francisco Franco que sempre reclamou a soberania sobre o enclave. Os planos estão há muito traçados e passam por deslocar as crianças e as mulheres na sua maioria para a Inglaterra, uma outra parte para a Jamaica e cerca de duas mil para a Madeira, uma ilha segura e onde os ingleses são considerados e mantêm muita influência. A neutralidade de Portugal ajuda e Salazar dá a sua anuência ao asilo dos gibraltinos em nome da Aliança de mais de cinco séculos entre as duas Nações.

O verão de 1940 é agitado no Funchal com a chegada de tantos estrangeiros, sobretudo mulheres e crianças de pele branca, olhos claros e cabelos loiros, pois muitos dos homens foram alistados no exército britânico. Alojam-se nos principais hotéis da cidade que após o início da guerra estavam praticamente fechados e recebem apoio monetário do governo inglês. Evelyn, uma judia jovem, fica hospedada com a família no Savoy e logo nos primeiros dias encanta os homens da cidade com a sua beleza, os seus vestidos e decotes e um comportamento avançado para o meio. Por contraste, choca as mulheres, frequentando tal como outras amigas, os cafés e clubes do Funchal, sozinhas, de boquilha na boca e em poses mais atrevidas. Sucedem-se os chás dançantes, as festas e os bailes nos hotéis e clubes e há uma espécie de euforia louca para esquecer as notícias e as maleitas da guerra. Nascem as famosas Noites da Madeira. A integração não é fácil e há um embate de mentalidades e de costumes, mas progressivamente a sociedade funchalense absorve as novas tendências. Apesar da escassez de alguns bens, a Madeira transforma-se num exílio dourado para os gibraltinos. O Mundo esta em guerra, mas a Madeira está em Festa, era o lema daqueles dias.

Luciano, um abastado comerciante de vinhos que fora empregado de uma firma inglesa, encanta-se por Evelyn e segue-lhe diariamente os passos, num namoriscar que à medida que o tempo passa, começa a ser correspondido, embora ambos sejam casados. O terrantez é uma droga que dá a volta às cabeças e mexe com os corpos e os dois encontram-se com assiduidade no Hotel Golden Gate, em pleno centro, onde matam os desejos e as emoções que não controlam. Por vezes, o amor é feito por entre os tonéis onde se guardam preciosos e antigos vinhos e onde Luciano bebe, gota a gota, toda a sensualidade que emana daquela cara angelical no topo de um corpo perfeito. As noites terminam nos casinos clandestinos, numa roleta, onde para além do dinheiro, às vezes também se joga a vida.

O inverno de 1942 chega e Evelyn é acordada com a triste e telegráfica notícia de que Peter morrera na frente de batalha em Casablanca, no decurso da Operação Tocha, um desembarque dos aliados na costa norte-africana. O consulado inglês apresenta condolências em nome do Governo e da Coroa e anuncia que providenciaria a transladação do corpo e o enterro em Gibraltar. As lágrimas escorreram-lhe pela cara e olhando o horizonte lança um último adeus ao seu marido. Evelyn sempre soubera que a guerra lhe traria a tristeza e a alegria.

Luciano abandona a quinta onde vivia com Elisabete, provocando um sismo na família e no seu círculo de amigos. Não era habitual na sociedade fechada da Madeira, a separação ou o divórcio, isso era coisa de estrageiros levianos. Alguns amigos optaram por montar casa a amantes mantendo o seu matrimónio, numa vida dupla, mas tolerada pelos outros concidadãos. Luciano não queria isso, queria gritar bem alto o seu Amor por Evelyn. Ele católico, ela judia, movem todo o tipo de influências e à custa de parte da sua fortuna conseguem que o Vaticano anule o primeiro casamento de Luciano. No final da guerra, derrotado o nazismo, celebraram matrimónio na Sé e fizeram jus à divisa de Gibraltar: “Nenhum Inimigo Nos Conquistou”.

(de um livro a publicar)