Crónicas

Mudamos pouco

Viver deixa marcas e o mais estranho é perceber que, por dentro, o tempo não passa, estamos de facto na mesma

Os amigos e as pessoas que não vemos há anos gostam de dar abraços e dizer aquelas frases mágicas de “estás na mesma” ou “o tempo não passa por ti”, mas não é verdade. Nós mudamos muito por fora, perdemos as covinhas do sorriso e a inocência no olhar, o cabelo fica branco e parece que tudo é mais lento, o metabolismo e o pensamento. Viver deixa marcas e o mais estranho é perceber que, por dentro, o tempo não passa, estamos de facto na mesma. Somos tal e qual como éramos aos 13, aos 15, aos 17... Eu pelo menos sei que sou ainda aquela miúda que subia a curva da entrada da escola dos Ilhéus, com uma saia de fazenda feita em casa e uma t-shirt do Snoopy.

Que tinha os cadernos desorganizados, estudava pelos livros velhos do irmão e passava as aulas com a cabeça noutro lugar e muito para lá dos muros da escola. Não ouvia as explicações de Matemática, fazia desenhos no caderno de rascunho nas aulas de Físico-química e tinha pesadelos de véspera com Educação Física e as aulas de Dactilografia. No intervalo ouvia as conversas das raparigas que se encostavam ao muro que dava para o campo de futebol num momento peculiar de admiração e inveja. Todas elas me pareciam seguras e bonitas e isso colocava-me noutro estágio de desenvolvimento.

Além de não ter os cadernos em ordem, de não saber pintar as unhas e de me faltar qualquer talento para fazer tricô, debatia-me com as notas de Matemática e Inglês e os meus testes cegos de Dactilografia estavam sempre cheios de erros e as cópias em papel químico fora de esquadria. De tudo, o que mais me doía era não ter jeito para versos e de me baralhar nas composições, que de tanto emendar e corrigir e riscar se transformavam num grande borrão difícil de entender. Pior apenas o desenho geométrico onde os trabalhos resultavam num poço de angústia, mãos transpiradas e dedadas nas folhas de papel Cavalinho. E lembro-me de como tudo, de como cada aula e cada disciplina me atormentava.

Se ao menos eu tivesse jeito para o desporto ou fosse craque em assuntos populares como música, se soubesse cantar, mas eu era eu e desde do desempenho desafinado de “Uma Gaivota Voava, Voava” em casa da minha tia Alice e para a família inteira que tomara consciência do que valia. Às vezes custava ver nos olhos dos outros a expressão de que para casos como o meu não havia esperança e não é o melhor para uma adolescente sentir que não tem jeito para nada, que não é popular e as notas da escola são banais. E não era, lembro-me de ter chorado algumas vezes, mas também me lembro de deitar tudo para atrás das costas e de descer a Rua do Jasmineiro para ir ver os filmes do Cine Casino.

Os melhores filmes passavam no Cine Casino e eu gostava daquele ambiente, das cadeiras fofas e do escuro, era como ter a vida suspensa num lugar onde não entravam os pontos de Inglês, nem o macramé das aulas de Têxteis, nem era preciso ter pesadelos com a Educação Física ou com os sapatos que ameaçavam romper. Ali era eu e o filme e a história que contava. No 8º ano eu gostava de histórias de amor e aventuras, aquelas em que havia um tesouro, uma heroína despachada e senhora de si e um protagonista meio cínico que, no fim, provava ser um tipo decente. Durante hora e meia, as aulas, a roupa e a borbulha que volta e meia aparecia na testa ficavam esquecidas, atrás das costas.

Mudamos pouco, quase nada. Por dentro, tenho as mesmas angústias, ainda transpiro das mãos com as aflições do trabalho, só não vou ao Cine Casino que a sala agora não passa filmes. Vejo-os em casa, no sofá da sala e continuo a apreciar as heroínas combativas, que dão luta e dos rapazes dos filmes meio cínicos que, no fim, se revelam os tipos mais decentes naquelas histórias de amor a roçar os dramas das radionovelas. Arrasto a desorganização a onde quer que vá, carrego as mesmas inseguranças e, embora não use saias de fazenda feitas em casa há 25 anos, continuo a apreciar a decência.