Crónicas

O botão da velocidade máxima

Houve uma altura, algures nos meus 14, 15 anos, que me os dias me pareciam enormes, vazios desgraçadamente solitários, mais ou menos como são os do meu pai e das minhas tias. Há, naquelas casas da minha infância, muita solidão e cansaço e o meu pai diz-me muitas vezes que o pior são as noites

Ainda agora arrumámos as toalhas de praia e já estamos a mudar para a hora de Inverno e oiço dizer que isto anda depressa, muito depressa, como se alguém tivesse acelerado o motor das passagem dos dias. Também me queixo, também me espanto quando a meio de Outubro percebo que há motivos de Natal nas montras e faltam dois meses e meio para o ano acabar. De facto, alguém carregou no botão de velocidade máxima e tirou-nos a calma para apreciar a vida. Às vezes não temos vagar para ficar à janela a ver a chuva a cair na varanda e quando temos tempo, não temos espírito e os momentos fogem, passam, um a seguir ao outro até ser meio de Outubro.

Para trás, desde aquele instante de comer 12 passas e pedir 12 desejos aos primeiros segundos do ano, estão 10 meses de muita rotina, de trabalho, de coisas práticas, de inutilidades, há tristeza e sonhos por conquistar. Penso que é assim com a maioria, o quotidiano não é uma aventura como nos filmes, quase nunca é tão bonito como nas fotografias. É isto, um dia atrás do outro a resolver imprevistos, azares, as contas que chegam, o cano que rebenta, o vidro partido do telemóvel e o desânimo. Também é a esperança para resolver tudo, que o tempo pode passar, mas há vida piores, mais duras e solitárias.

O tempo não passa da mesma maneira para todos, não passou sempre assim para mim. Houve uma altura, algures nos meus 14, 15 anos, que me os dias me pareciam enormes, vazios desgraçadamente solitários, mais ou menos como são os do meu pai e das minhas tias. Há, naquelas casas da minha infância, muita solidão e cansaço e o meu pai diz-me muitas vezes que o pior são as noites, custa muito amanhecer, mas os dias, depois, não são assim tão bons. Os amigos estão mortos ou doentes, valem os cães, mas até esses estão velhos e doentes. E custa, custa muito os almoços e os jantares, as horas que passam entre ambos. Depois cansa ver muita televisão.

Pelo meio, ficam as nossas conversas, que são assim uma quebra de rotina. Da minha e da dele, que não é simples falar com alguém tão diferente na idade e nos gostos. O meu pai atura-me as teorias todas e faz-me as vontades como ir passear ou visitar museus. E eu sei mais de agricultura, de semear e plantar, sou informada dos planos para apanhar bananas e ameixas, da maquinaria toda que há na loja que serve de oficina e cozinha e ainda me conta todos os truques e manias dos dois cães que o seguem pelo quintal e na fazenda. Falamos muito, combinámos almoços e as datas das consultas e os medicamentos que é preciso levantar. Fazemos tudo isto e temos ambos um feitio difícil.

Temos entre nós os nossos temperamentos, as diferenças de formação – o meu pai lê com dificuldade e eu andei na faculdade -, a distância de gerações que se vê no gosto pela mobília e pela roupa e temos também as nossas conversas. Eu sei que me faz bem estar com o meu pai e tento ouvir e acarinhar. Também me aborreço e às vezes conto até 100 antes de dizer o que, na verdade, não quero mesmo dizer. Engolir as palavras pode ser uma forma de gostar. Eu faço isso pelo meu pai; ele faz por mim quando me vê chegar de calças de ganga rasgadas ou quando não posso ir almoçar aos sábados.

Uma vez por outra sai aquele lamento, o tempo custa a passar e o pior são as noites, mas isso não interessa muito quando me recebe com um sorriso no cimo da escadas. Há muita solidão, muitos quartos vazios na casa onde cresci e há o meu pai que, por enquanto, me liga às origens e abraça com ternura nesta época de dias acelerados.