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Crónicas

Máquinas de trabalho

A lição que os portugueses não aprendem quanto ao trabalho é a que nunca aprenderam quanto à vida: a de que a sorte das suas reivindicações depende da vontade, e que a insatisfação, ou mesmo a tristeza, não se resolve por intervenção externa

A pandemia reacendeu o amor, e o ódio, entre os portugueses e o trabalho. Trabalhar em casa, trabalhar de longe, trabalhar menos (ai não), não trabalhar, e trabalhar sem trânsito, rotina ou comuta, despertou no português o Bakunine que antes só descabeçava, inofensivo, a partir da terceira cerveja.

A filosofia de trabalho do português distingue-se pela premissa. Todo o português se julga – e isto é o melhor que se pode julgar – uma máquina de trabalho. Esta máquina, afinada à perfeição, é todavia entravada pela produtividade mais tímida e pela jornada laboral mais longa de todo o hemisfério Norte. Porquê? Fruto de um azar tão certo quanto simples: a máquina não trabalha só. A sua perfeição mecânica é enguiçada pelas limitações, humanas, de criaturas menores que com ela insistem em partilhar o habitat. Estas criaturas, fatalmente desprovidas da individualidade, do sentido crítico, e do génio da máquina, dedicam a sua reles existência à graxa, à coscuvilhice e à dissimulação, conservando-se num frágil equilíbrio entre não fazer nenhum e garantir o favor do chefe – que, aos olhos da máquina, é igualmente pelintra.

De quando em quando, a máquina deprime-se com este ambiente. E sonha. Porque é uma máquina de trabalho – e não de sonhos – sonha com ferramentas de gestão, psicologia e kaizen, idealizando e concebendo o mundo de máquinas onde lhe seria com proveito possível trabalhar.

E que mundo! As máquinas entrariam cedo, cumprimentando-se com um aceno de cabeça, e começariam a bulir. Produziriam durante quatro horas, sem interrupção para notícias, conversa, cigarros ou café. Como trolhas num andaime, almoçavam à secretária, contemplando a delicadeza da existência enquanto moíam brócolos com cuscuz. Desembaraçadas do rancho, empenhavam-se em novas quatro horas do mesmo ritmo maníaco de despacho. Às cinco e meia, com o dever cumprido, despediam-se de um chefe radiante e nefelibato como o reflexo do sol numa manhã de geada. Exercitavam-se. Chegavam a casa a tempo do Preço Certo e da sua quota de tarefas domésticas, com energia para o adestramento infantil que confundem com uma educação, e em relação ao qual se sentem hoje em falta.

Aqui chegada, a máquina sente que começa a pisar as margens da utopia. Como boa máquina portuguesa, a presença do onírico e da ficção incentiva-a a continuar. Perdida por cem, perdida por mil! E a máquina atreve-se a sugerir ideias políticas. Como Jacinta Ardern, Primeira-Ministra da Nova Zelândia, acredita nos méritos da semana de quatro dias. Como os pregoeiros do teletrabalho, a máquina crê que pode, sem descrédito ou défice, fazer tudo o que faz a partir de casa, com ganhos para o trânsito e para o ambiente. Tudo sem prejuízo – naturalmente – de regalias como carro, transportes, e subsídio de almoço. A Covid não passa do pretexto para uma revolução que já marchava, o tiro que inaugura uma batalha destinada.

Mas é aqui que a máquina se engana. A pandemia não vai mudar o curso do trabalho, como nenhum infortúnio, vazio ou calamidade o mudou antes dela. A lição que os portugueses não aprendem quanto ao trabalho é a que nunca aprenderam quanto à vida: a de que a sorte das suas reivindicações depende da vontade, e que a insatisfação, ou mesmo a tristeza, não se resolve por intervenção externa. Os outros povos do Sul perceberam-no, e por isso se dispensam – para desespero dos visitantes – do trabalho às sextas-feiras, ou durante longos almoços, indemnizando-se em sol e em vida do tempo que o destino lhes subtraiu em dinheiro.

O português, por contraste, tem horror a que o considerem preguiçoso, e dedicou boa parte da sua cultura ao encobrimento dessa terrível hipótese. A máquina de trabalho não é um simples mito, criado à medida dos nossos complexos para os suavizar. É o eixo de uma cultura de vitimização e irresponsabilidade, que pela calada atribui ao trabalho uma reverência estranha à nossa sensibilidade.

Chega-se à evidência: os portugueses fazem horários doidos porque não gostam assim tanto de trabalhar. Para esconjurar essa dura, mas escondidíssima verdade, enxertam no trabalho toda a sorte de batotas, engodos e recreios – o suficiente para torná-lo suportável, mas não tanto que o descaracterize. É exemplo acabado desse truque o hábito, saudabilíssimo, de cultivar amizades no escritório, com a desculpa – essa sim, inaceitável – dos contactos ou do capital social; de tal modo que quem entra, faz o seu trabalho, e prontamente sai, é excomungado como um delator, e para sempre fustigado com o labéu de asperger ou anti-social.

A atracção do português pelo local de trabalho explica-se, então, pelo simples facto de ele ser um local de muitas outras coisas. O português, mais inibido do que os restantes mediterrânicos, escondeu a festa sob a carapaça do dever. É possível que o tenha feito por inércia, e até contra a sua própria vontade. Mas também foi assim que os espanhóis começaram a dormir depois do almoço. E quem é que os contraria? Nem eles.

O trabalho podia ser diferente depois disto. Mas não será. Vimos como poderíamos ser, mas não queremos sê-lo. Somos demasiado inseguros para viver com a suspeita de que não somos máquinas de trabalho. E por isso somos, felizmente, demasiado inseguros para sê-las também.

Ficamos assim.

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