Crónicas

Gente de olhos apagados

Hoje, sentado a olhar para o vazio através de uma janela qualquer, sabe que lhe chamam alta problemática. Não tem condições para tratar de si próprio, nem tem ninguém a quem recorrer. Há muito que as filhas emigraram. Com elas, foram embora os netos, as gargalhadas, as conversas que não percebia, as discussões e o brilho dos olhos. Percebeu que se esvaziava aos poucos e que aquele vazio dava lugar às dores insuportáveis nos rins e na alma. Deixou de conseguir respirar normalmente, sufocado pelo peso da mágoa e da solidão. Está rodeado de gente de bata branca que às vezes sorri e arranja tempo para falar. Há outros como ele. Assim, a olhar para o vazio, de olhos apagados.

Passa os dias a olhar para o vazio com aqueles olhos tristes que um dia chamaram atenção de uma criança acabada de se lançar à descoberta do mundo.

- Olha, mamã. Aquele senhor velhinho tem uns olhos apagados!

A mãe não percebeu logo o que a menina de faíscas nos olhos queria dizer. O velho entendeu à primeira. Ele sempre soube que as pessoas quando envelhecem ficam com um olhar diferente. Viu o brilho a desaparecer gradualmente dos olhos dos pais. O azul céu de outrora tornou-se cinzento, baço, foi perdendo aquela chama que iluminava o olhar do pai, até que um dia se apagou....

Aconteceu o mesmo ao verde que sobressaía no rosto da sua mãe. Tal como uma erva viçosa, o passar dos anos foi consumindo as forças e as energias, até que aquela planta da vida acabou por murchar, tornando-se numa amálgama de verde fosco coberto por uma fina camada branca.

Tinha saudades dos seus pais que ficaram com ele até ao último suspiro. Fez questão de cuidar dos velhinhos, alimentando-os e lavando-os para grande admiração de toda a vizinhança. Entre os dias de trabalho na fazenda e as horas dadas como moço em casa alheia, arranjou maneira de os amar e respeitar até aos seus últimos dias. Nunca pensou em chegar a velho.

A casa, depois dos pais partirem, ficou a ranger por todos os sítios, tal como as esquinas mais difíceis e por vezes inacessíveis da sua alma.

Também ele rangia por dentro quando pensava no futuro. Decidiu arranjar uma moça para casar. Precisava de alguém para tratar, agora que os pais já não existiam.

- Será que os meus velhinhos ainda têm dores nos rins?

Por vezes, estas e outras perguntas malucas tomavam-lhe o pensamento. Ficava horas a imaginar, em segredo, como estariam os pais.

- Será que o azul céu e o verde das folhas de rama voltaram a brilhar?

Raramente falava com a mulher sobre as saudades que sentia dos seus velhinhos. As suas coisas eram as suas coisas e ninguém precisava de saber que fantasmas habitavam na sua cabeça.

Vieram as filhas. Duas raparigas de olhos castanhos como os da mãe. Irrequietas e com o sangue da vida a pulsar freneticamente, faziam-lhe perguntas que ele não sabia responder.

- Nunca fui bom para a escola, mas vocês têm de ser!

Trabalhou arduamente para dar uma vida digna às suas três mulheres. Por vezes, chegava a casa completamente estoirado do trabalho braçal da fazenda, mas ainda tinha tempo para pegar no canivete e fazer um brinquedo qualquer para as suas raparigas. Concentrado a esculpir mais uma das suas obras de arte, fazia questão de deitar o olho, de vez em quando, à mulher que andava entretida a aquecer a sopa no fogão a lenha, onde tantas e tantas vezes tinha sido cozinhada a canjinha para os seus velhinhos.

As miúdas falavam sem parar da escola, depois começaram a falar de roupa, de vernizes, de amigas, de saídas à noite, até que chegou o dia em que começaram a falar de namorados e de trabalho. Cresceram tão depressa que ele não escondeu a surpresa quando percebeu que as suas raparigas já eram mulheres feitas que precisavam do pai para as levar ao altar.

Vieram os primeiros netos, as ausências, a morte da sua moça que anos antes tinha arranjado para casar. Surgiram as dores, a casa a ranger cada vez mais e a alma a doer numa urgência feroz que os médicos não percebiam, nem eram capazes de resolver.

- Ela morreu com um brilho nos olhos. Ao menos isso! O tempo não lhe tirou o brilho daquele castanho terra...

Hoje, sentado a olhar para o vazio através de uma janela qualquer, sabe que lhe chamam alta problemática. Não tem condições para tratar de si próprio, nem tem ninguém a quem recorrer. Há muito que as filhas emigraram. Com elas, foram embora os netos, as gargalhadas, as conversas que não percebia, as discussões e o brilho dos olhos. Percebeu que se esvaziava aos poucos e que aquele vazio dava lugar às dores insuportáveis nos rins e na alma. Deixou de conseguir respirar normalmente, sufocado pelo peso da mágoa e da solidão. Está rodeado de gente de bata branca que às vezes sorri e arranja tempo para falar. Há outros como ele. Assim, a olhar para o vazio, de olhos apagados.

- Era tão bom se eu pudesse comer uma canjinha. Daquelas feitas no fogão a lenha como eu fazia para os meus velhinhos...