Crónicas

Flores, são flores...

O jardim é bonito, tem canteiros e recantos onde se misturam cravos, cravinas, bocas de peixe, brincos de princesa, rosas de várias cores e géneros, gladíolos, gerberas, dálias e tudo o que a minha mãe gosta

Se fechar os olhos consigo ver, como se fosse um filme, o quintal e o jardim, as duas laranjeiras que davam sombra nas tardes de sol, a roseira vermelha a tombar sobre a porta do caminho, os canteiros que ladeavam os três lanços de escadas e as heras a forrar a parede. E, no terreiro, sentadas em duas cadeiras de praia, a minha tia Alice dormita em cima do francês do bordado e a minha mãe arremata e corta a linha com a tesoura que tem no colo.

O rádio-gravador Aiwa tem a entrada das cassetes avariada, o botão vermelho de gravar desapareceu, mas a telefonia ainda toca e dá o sinal das quatro da tarde. A minha mãe ouve as notícias e depois chama por mim, que é a hora do café. Eu levo as chávenas à vez, ainda a tremer, que nunca me ajeitei com os tachos e o fogão e deixo-me ficar uns instantes no quintal. Está uma tarde bonita, há borboletas e abelhas a voltear em torno das flores e lagartixas nos muros.

O jardim é bonito, tem canteiros e recantos onde se misturam cravos, cravinas, bocas de peixe, brincos de princesa, rosas de várias cores e géneros, gladíolos, gerberas, dálias e tudo o que a minha mãe gosta. Há azáleas, orquídeas e sapatinhos em vasos, fetos e avencas a cair em cascata no fim do quintal e em frente ao poço de lavar decidiu plantar um pé de glicínias, estrelícias e uma roseira de correr. E, nos anos bons, que eu nunca sei bem quais são, tudo isto explode ao mesmo tempo. Nos anos bons, até as ervas daninhas dão flor e a minha mãe diz que é bonito.

É uma mulher austera, a minha mãe, pessoa de poucos luxos, sensata, que guarda debaixo do papel de oferta que serve de forro à gaveta da cómoda uma reserva de dinheiro para o caso de ser preciso. Já não vai para a nova, tem rugas e cabelo grisalho, mas nada funciona sem ela. O que acontece vem da energia, do espírito e da inteligência daquela mulher magra e baixa. A nossa casa, o jardim, a nossa vida, tudo é caótico, fora do lugar, dá sempre a impressão que não vai dar tempo, que vamos perder o autocarro, o almoço, a hora da consulta do médico, mas somos salvos no último minuto.

A minha mãe salva-nos quando cose o buraco na nossa t-shirt preferida e retoca a mancha nos sapatos brancos, quando nos ouve as preocupações, nos mete o braço ao domingo à noite no regresso da casa das minhas tias e garante que temos o futuro pela frente. Ou quando nos olha, quando nos sorri, quando perde a cabeça e diz que somos o Diabo em traje de pequenos. É a mão que apazigua a angústia do meu irmão, a força que me empurra para frente. Somos diferentes e ela sabe, nós teremos sempre a sua lucidez.

Se fechar os olhos sou capaz de ver a nossa a casa, o Pepe e o Preto a correr pela fazenda, a minha tia Alice e a minha mãe a bordar no quintal e eu a levar as chávenas para a cozinha sem saber das saudades que vou ter. Das flores, dos cães, do quintal, das tias, daquela vida caótica, de acordar e sentir o cheiro das laranjeiras em flor, de ouvir as horas na telefonia e a minha mãe chamar por mim só para saber onde estou.