Crónicas

Este já não é bem o meu tempo

Aquela fé, aquela fé militante e optimista que têm as pessoas aos 18 anos, mesmo com as ameaças, mesmo que venha a seca ou cheias de que falam as notícias

Sou pessoa do tempo do Pão Por Deus remediado, de lá de cima do Laranjal dos anos 70, com saquinhos de pano e castanhas que, quando me estendi no sofá para aquelas duas horas de sono não oficial, estranhei a algazarra das redondezas que entrava pela janela. E a festa foi forte, durou a noite e muitas bruxas, bruxos e demais aberrações resistiram à luz do dia. De manhã, ainda se ouviam as vozes de uns quantos naufrágos do Halloween.

O relógio marcava oito e meia e foi daqueles momentos clarificadores. Eu a levantar-me de uma noite de sono como manda a lei – de oito horas sem contar com o sofá – e uma multidão a chegar da festa, ainda com fôlego para gritar, mais jovem e certamente sem paciência para ouvir a história da ‘cota’, que dorme muito e fala de tradições sem graça como esse de ir à luz do dia pedir dinheiro, nozes e castanhas aos vizinhos.

O que, dito assim, perde de goleada para aqueles fatos de bruxas, teias de aranha de nylon, caras de monstros pintadas a lápis preto, caveiras de plástico e os outros adereços que se vendem nas lojas chinesas. A ideia é tentadora, o disfarce traz mistério e seduz, falar de bruxas é o mesmo que trazer à conversa a magia, as coisas do outro mundo. E tudo o que não é deste apela a qualquer coisa estranha, arrasta velhos e novos, mas os jovens têm energia para aguentar a noite, o amanhecer e a claridade do dia.

E dispensam o sono com diz o médico, que um dia terão tempo para dosear tudo, agora são novos, são todas as possibilidades em aberto e a última vez que me senti assim foi há coisa de 30 anos, naquele ano em que o muro de Berlim caiu. Eu vi pela televisão em direto e lembro-me de ter acreditado que, daquele momento em diante, o mundo seria um lugar melhor. O muro era uma fronteira que alguns alemães de leste arriscavam atravessar apesar dos guardas armados. Sem ele, iríamos todos respirar melhor.

Aquela fé, aquela fé militante e optimista que têm as pessoas aos 18 anos, mesmo com as ameaças, mesmo que venha a seca ou cheias de que falam as notícias. A época até parece perdida, falta dinheiro, perspectivas, mas s energia da juventude dá a impressão que tudo se arranja. Se se perdeu o Pão Por Deus que venha o Halloween, a festa faz-se na mesma e, como corre o tempo, a tradição não precisa mais do que um par de anos. Depressa se ganha o adjectivo.

Há uns, assim como eu - os que dormem sempre um sono não oficial no sofá enquanto tentam seguir uma série na televisão – que insistem em lembrar como era antes nessa pré-história sem telefones, sem redes sociais, sem Internet, a correr por becos e caminhos e a ver notícias uma vez por dia na televisão, o que nem dava para ficar a maniar nas desgraças. É um tempo que não volta, de outro século e parece as histórias que a minhas tias contavam na roda do bordado sobre noites à luz do candeeiro a petróleo.

O relógio do telefone marcava oito e meia e eu percebi que este já não é bem o meu tempo. As possibilidades são agora quase todas destes jovens que abraçaram o Halloween