Crónicas

“És a Marta!”

Quando não havia com quem ficar, a minha mãe deixava-me com a Dolorezinhas e tudo era mais ou menos mágico naquela casa de paredes grossas de pedra

Todas as semanas desço a entrada, passo pela casa velha e pelo palheiro, dá para ver tudo melhor agora que o mato foi cortado. Por ali, entre o quintal e a fazenda em ruínas, estão memórias de infância e a minha tia Conceição, a quem a idade pesa e confunde. Sente-se só, falta-lhe o pai e a mãe, faltam as irmãs, os vizinhos mudaram. São 86 anos num lugar que tem dificuldade em reconhecer.

O tecto da casa velha abateu, os anos não perdoam, nem às casas, mas a minha tia tem saudades do tempo em que lá viviam a Dolorezinhas e a Delaidinha, fala como se tivesse sido há uns dias, fala da amizade e da companhia, como se fossem da família. E eram, podíamos entrar e sair daquelas duas casas de um quarto e cozinha como se fosse a nossa.

Quando não havia com quem ficar, a minha mãe deixava-me com a Dolorezinhas e tudo era mais ou menos mágico naquela casa de paredes grossas de pedra. O chão em cimento vermelho da cozinha, a sala que também era quarto de dormir e o grande mosquiteiro em papel dependurado no tecto como se fosse um candeeiro.

Nos dias de calor, sabia bem estar ali no fresco a ouvir o Teixerinha a cantar desgraças no Posto Emissor e a ver o recorte das mulheres a bordar à porta. Ao fundo, o terreiro com flores e, depois disso, as latadas da vinha, os terrenos cultivados, tratados e cuidados, as árvores de fruto. A vida era simples e continuou simples mesmo quando a minha tia Conceição foi arrumar quartos para o hotel Girassol.

Ainda me lembro de a ver chegar de cabelo arranjado e batom, perfumada e de unhas pintadas. Às vezes, parecia uma turista inglesa, rosada e redondinha, e trazia novidades da cidade. Bolos, revistas, ferros para pentear o cabelo, cremes da Avon e tudo o que nunca se tinha visto antes. De todos, foi a primeira a meter na cabeça a mania de viajar, desencantou uns amigos no Porto e todas as férias metia-se no avião e voltava carregada de jogos de toalhas e tecidos para fazer saias e vestidos.

E voltava para dividir o que trazia e guardar o resto, pois gostava de dar e partilhar. Nos anos do curso, mandava-me cinco contos todos os meses e, pelo Natal, arranjava mais algum para ajudar a comprar um casaco para o frio. Os sobrinhos ocupavam o lugar dos filhos, embora tivesse uma maneira estranha de amar e gerir os afectos, quase sempre conflituosa. Acho que não tinha medida. Num dia enchia-nos atenção, no dia seguinte perdia a paciência, mas se fosse para ajudar estava lá.

Esteve lá enquanto conseguiu, enquanto a idade não pesou e a idade é um fardo pesado, que se sente no corpo, na memória que falha, na saudade dos que morreram, nessa solidão que não se resolve. Da mulher de meia idade da minha infância existe agora uma sombra na velhinha muito velhinha que me recebe todas as semanas com sorriso, um sorriso ainda maior quando me vê mais ao perto e me diz “és a Marta!”