Crónicas

E tudo o que ficou por fazer

Parece-me simples: treinar, fazer dieta, descontrair e trabalhar. Assim, como se a vida não continuasse a mesma, com as mesmas preocupações

Os gatos viraram as costas assim que entrei em casa, estavam ofendidos com dez dias de ausência e só vieram roçar-se nas pernas depois das malas terem sido recambiadas para a arrecadação. Vieram a custo, que não esquecem ofensas depressa e, nisso, somos parecidos, os gatos e eu. Não sou de esquecer a menos que sejam prazos, recados e assuntos práticos. E é por isso que chegar de férias implica este corrupio de pendências, dos mails que ficaram esquecidos, dá a impressão de que não vou aguentar e não me parece justo entrar de rompante na rotina.

Ainda há uma semana estava estendida ao sol e agora estou a arrumar roupa, a dobrar roupa, a tirar o pó de cima dos móveis, a encher os dias de trabalho e obrigações quando há poucos dias tinha prometido mudar de vida. As férias são como o Ano Novo, fico com a cabeça cheia de ideias, quero alterar tudo, até o corte de cabelo, mas sobretudo a atitude. Às vezes mantenho as mesmas roupas descontraídas, acho que salientam o bronzeado. Ou então deixo ficar no braço umas pulseiras de peschisbeque, daquelas compradas por impulso numa feira de artenasato.

É a derradeira tentativa de guardar as férias e as ideias que se meteram na cabeça, de que tenho de descontrair mais e começar um novo ciclo. Um que dê para aproveitar o entardecer, que me faça mais feliz e mais magra. As férias têm aquele particular de nos fazer despir na praia e de nos confrontar com o corpo que, salvo os abençoados, nunca é de modelo. E eu sei que o mais importante é o que somos, o espírito e por aí fora naquela história de que o que vale é o ser e não o parecer, mas na praia, naqueles primeiros dias, serão poucos os que não pensam que, nem que fosse só por uns dias, dava jeito ter uma estampa física de modelo.

Parece-me simples: treinar, fazer dieta, descontrair e trabalhar. Assim, como se a vida não continuasse a mesma, com as mesmas preocupações. Os dias têm as mesmas horas, o trabalho leva tempo e energia e os imprevistos sucedem-se. Daqui até às férias do próximo ano muitas coisas vão acontecer, mas agora que ainda estou a entrar na rotina, que vejo o bronzeado no espelho quero acreditar que vai ser tudo diferente. Vou ser outra pessoa, assim mais metódica, focada, com um plano para cumprir à risca e sem desvios.

Também sei que isto costuma passar em duas semanas, que é mais ou menos o tempo que leva a rotina a chegar e a tragar tudo com aquele sem fim de coisas que se fazem sempre, umas iguais às outras e são a melhor maneira de sobreviver à pressão e às inquietações diárias, ao telefone que toca com trabalho, ao dinheiro que não dá para tudo, que não estica, nem se multiplica. E quando chegar terei menos energia para descontrair ao entardecer, para ler ou para continuar o plano de treino. Nesse momento, o sofá irá abraçar-me e a rotina parecerá algo suave e bom.

E nesse aconchego estarão os gatos com o seu silêncio sábio a aproveitar o sol que entra pela janela. Talvez se enrosquem nos meus pés já esquecidos da ofensa que lhes fiz, esta de os deixar 10 dias sozinhos para voltar cheia de ideias.