Crónicas

Dívidas de hoje, penhoras de amanhã

O Governo e o Parlamento têm que atuar e legislar no sentido de travar esta escalada do crédito ao consumo e, sobretudo, pôr na ordem alguma banca

Uma das razões que acentuou a recente crise económica em Portugal foi o sobre-endividamento das famílias. O Estado, as Regiões Autónomas, os Municípios, os bancos, as empresas e muitos cidadãos, todos viviam acima das suas possibilidades e chegou um momento em que não puderam satisfazer o pagamento dos empréstimos contraídos. No caso das famílias, para além da casa, um bem duradouro, a banca emprestou dinheiro para tudo: carro, mota, barco, móveis, férias e o mais que se pudesse imaginar. O consumismo e a euforia do crédito fácil invadiram o país e quem governava chegou a medir o crescimento económico pelo número de vendas de eletrodomésticos. O que se passou a seguir toda a gente conhece: intervenção da troika, plano de ajustamento com severa austeridade, falência de bancos, insolvência de empresas, corte de salários e de pensões, aumento de impostos e aumento do desemprego. A banca portuguesa endividou-se nos mercados internacionais para satisfazer esta loucura de crédito que tomou conta do país e os resultados estão à vista: muitas instituições de crédito faliram, outras ainda têm as suas contas desequilibradas e os contribuintes já tiveram que pagar 17 mil milhões de euros para pagar o regabofe.

Mas o pior foram as consequências para as famílias mais endividadas, tendo algumas taxas de esforço próximas, iguais ou mesmo superiores aos seus rendimentos. Acabaram por perder tudo para a banca ou em penhoras do fisco e atravessam, ainda, maus momentos. É claro que houve irresponsabilidade, mas quando o Estado e a Região davam o mau exemplo e declaravam que “alguém há de pagar a dívida” e a banca enviava cartões de crédito para as casas, convidando aos gastos, é obvio que a coisa só podia dar para o torto.

Recuperada a estabilidade financeira à custa de muitos sacrifícios e até de vidas, pese embora a dívida da República continuar a níveis muito altos, existem sinais preocupantes de um regresso ao crédito fácil. Vemos ofertas, através da internet, dos sms, dos emails, com empréstimos despachados em poucas horas...a juros 5 vezes superiores às que um cliente da chamada banca tradicional consegue negociar. As vítimas são as pessoas mais pobres, desempregadas, iletradas financeiramente que numa situação de aflição, recorrem a estes créditos, alguns com enganosos períodos de carência, e depois apanham com mensalidades que não podem pagar.

O ano passado, o sobre-endividamento das famílias na Madeira e do continente voltou a agravar-se com o Gabinete de Proteção Financeira da Deco a registar um aumento substancial dos pedidos de ajuda (29.350), muito superior aos anos de chumbo da crise entre 2008 e 2012. O mais grave é que a taxa de esforço (a percentagem do rendimento que é destinada a pagar os empréstimos), subiu de 70 para 80 por cento! Isto é mais do dobro do que é recomendável pelos especialistas que é um valor à volta 35%. Num rendimento de 1000 euros, uma família após o pagamento ao banco, fica apenas com 200 euros para as restantes despesas. A curto prazo entrará em incumprimento, com todas as consequências conhecidas. A Deco diz que muitas famílias já não apresentavam condições para terem acessos a esses créditos, mas mesmo assim alguma banca contrariou as recomendações do Banco de Portugal de junho de 2018. Mas, mais uma vez, a supervisão está a ser negligente já que estas recomendações não passam disso mesmo, quando deveriam ser obrigatórias e ter limites mais apertados para o crédito ao consumo e para os cartões de crédito. Além disso o Banco Central recomendou que neste tipo de crédito, a taxa de esforço pode ir até aos 50%! É assim que têm aparecido famílias numa situação de verdadeiro descontrolo com vários créditos pessoais e o que se avizinha são penhoras de bens e de rendimentos. Os dados da Deco referem que estas quase 30 mil famílias que pediram ajuda têm em média 5 empréstimos, um de habitação e os restantes de consumo. Só 10 por cento desses agregados consegue renegociar os empréstimos e equilibrar a sua vida.

Neste quadro, o Governo e o Parlamento têm que atuar e legislar no sentido de travar esta escalada do crédito ao consumo e, sobretudo, pôr na ordem alguma banca que ataca com publicidade enganosa e altos juros, os cidadãos e as famílias mais carenciadas que, num momento de sufoco, são tentadas a resolver um problema, criando outro, ou então querem aceder a bens ou gastos para os quais não dispõem de rendimento. Os critérios da avaliação de risco têm que ser mais rigorosos para que não se venha a lamentar novos casos de insolvências, de empobrecimento e, mesmo, de suicídios, a que assistimos há bem pouco tempo. Temos que atuar para que as dívidas de hoje não sejam as penhoras de amanhã.