Crónicas

Deus salve o reino

O Brexit é o auge da crise da identidade europeia e oxalá não seja o princípio do fim da União

O projeto da União Europeia, inicialmente batizada de Comunidade do Carvão e do Aço (1950), representa um dos mais prolongados ciclos de paz e de prosperidade no Velho Continente. Flagelado por duas sangrentas e mortíferas guerras e por dois totalitarismos (nazismo e comunismo) no século XX, a construção de uma Europa Unida e solidária, baseada na Democracia e no Direito, numa Economia de Mercado Livre e num Estado Social, foi um ideal dos grandes políticos europeus que lideraram a vitória na segunda Grande Guerra. Derrotado o nazismo, havia que sanar as razões que tinham levado à eclosão do conflito, reconstruir regiões e países, mas também propagar as Liberdades e os Direitos Humanos do Atlântico aos Urais, reunificar o Continente (objetivo parcialmente conseguido com a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento do império soviético) e fazer da Europa, um farol da civilização. A esta tarefa entregaram-se líderes como Winston Churchill, Robert Schuman, Konrad Adenauer e Jean Monnet, entre outros, que sonharam mais alto e viram mais longe.

Em 1947, Churchill escreveu: “Quando o poder nazi foi quebrado, perguntei a mim próprio qual era o melhor conselho que podia dar aos meus concidadãos aqui, nesta ilha, e no outro lado do Canal, no nosso devastado continente. Não houve qualquer dificuldade em responder à pergunta. O meu conselho pode ser dado numa única palavra: Unam-se!”. Este conselho do velho leão volta a fazer todo o sentido, agora que o Reino Unido, fruto de calculismos falhados e de populismos ilusórios, se prepara para sair da União. O que se passou desde a convocação do referendo- um erro clamoroso de David Cameron- que ditou o abandono; as negociações entre Londres e Bruxelas que deixam muitas pontas soltas e a divisão do povo inglês, são fatores preocupantes para o Reino e para a Europa. Não sei quem ganhará com este Acordo, mas estou certo que todos os que acreditam no ideal europeu ficam a perder. O Brexit é o auge da crise da identidade europeia e oxalá não seja o princípio do fim da União.

A emergência dos nacionalismos, populismos e extremismos por toda a Europa, com o esvaziamento do centro político, é o resultado do desencanto dos cidadãos perante a perda de soberania dos Estados, das políticas financeiras austeras e restritivas, da crise dos sistemas de proteção social, da perda da solidariedade entre Estados mais ricos e mais pobres e de uma excessiva centralização e burocratização das decisões em Bruxelas. O que se está a passar na França com uma instabilidade social e uma violência imprevisíveis; a desautorização praticada pela Itália perante os Tratados e instituições europeias; a falta de liderança na Alemanha com o fim da era Merkel e a previsível saída da Grã-Bretanha, são sinais de desagregação da União Europeia. Se tivermos em consideração, o afastamento da Administração Trump do atlantismo e a tentativa de reconstrução do império russo, temos sérias razões para temer o pior, mesmo a eclosão de novos conflitos no espaço europeu, como agora se viu com a tensão militar entre a Rússia e a Ucrânia, após a anexação da Crimeia.

Se é verdade que em muitos momentos, o Reino Unido foi uma voz dissonante nas políticas europeias, algumas vezes na defesa da sua soberania e contra o federalismo, é igualmente certo que o seus líderes sempre foram preponderantes na construção europeia, como foi o caso da Senhora Thatcher, e o país pelas suas relações internacionais, em particular com os Estados Unidos, acrescentava enorme peso político à União, à qual aderiu no primeiro alargamento em 1973. Sou daqueles que torcem para que a Inglaterra se mantenha na União, seja pelo chumbo do acordo de saída, na próxima terça-feira no Parlamento- desde sempre o expoente máximo da Democracia britânica- seja através de um novo referendo onde o realismo vença o populismo, após a realização de inevitáveis eleições gerais. Sou defensor da Democracia, mas quando como parece estar, paradoxalmente, a acontecer, o voto ou as eleições põem em causa a Democracia, então há que repensar o sistema e o seu funcionamento, evitando, por meios legais, a emergência dos extremismos e dos totalitarismos.

O abandono do Reino Unido, marcado para março do próximo ano, a acontecer, não deixará de abalar a União Europeia e poderá mesmo conduzir à sua erosão política. Mas o divórcio será muito doloroso para os ingleses e para os europeus e, pese embora todas as garantias sobre os direitos dos cidadãos europeus, não deixará de afetar, negativamente, a vasta comunidade portuguesa, muita dela originária da Madeira, que ali estuda e trabalha. Para além disso, estamos perante o nosso mais antigo aliado a que estas nossas ilhas estão historicamente ligadas por laços sem fim. Também por isso espero que Deus Salve o Reino e a Europa desta separação.