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Crónicas

Desabafo cultural ou Cultura do desprezo

Aos velhos do Restelo, que continuem a falar sozinhos... a todos os que nos ajudaram nestes dois primeiros anos, bem hajam

Não me decidia sobre que título escrever, decidi colocar os dois. Dizia eu, há precisamente dois anos, numa entrevista a este jornal, que explicar a utilidade da cultura dava muito trabalho. Passados dois anos, pergunto-me se todo esse esforço compensou. Como seria de esperar, financeiramente (para já) não, mas há-de ficar sempre um gostinho na boca, das barreiras que ultrapassámos e dos esforços que envidámos , às vezes contra tudo e contra todos. Do projecto que nasceu e da obra que se criou. A luta pela cultura é uma luta desigual, porque se por um lado se espera rentabilidade financeira da mesma (o que eu defendo) nomeadamente através deste vetor contemporâneo chamado indústrias criativas , por outro há sempre quem esteja à espera que a oferta cultural seja de borla porque todos deviam ter direito a ela. Entre estas duas existe um Estado a quem se pede que defenda e promova o nosso património cultural e se possível o difunda.

É por isso natural, que ambos existam interligados e que se apoiem mutuamente. Não à custa de subsidiozinhos que os tornem dependentes e aburguesados mas sim através de dinâmicas conjuntas de construção de uma visão estratégica para a cultura que é o expoente máximo da nossa caracterização enquanto sociedade. Não através da pedinchice e do nacional encostanço , dessa mama que muitas vezes sustenta alguns que se acham no direito de viver às custas porque trabalham na cultura mas sim na valorização de projectos que transformam a comunidade num espaço de fruição, onde gerações se encontram e se permitem beber história e critatividade, cooperação e desenvolvimento. Passado, presente e futuro.Por isso deve existir uma simbiose entre eles. Porque existe interesse público nisso e porque quando privados o fazem poupam recursos ao próprio Estado substituindo-o sob diversas formas e enriquecendo as regiões onde se instalam.

Para os mais desatentos, este projecto da Atlanticulture do qual eu faço parte tem feito o seu caminho, sempre independente e tantas vezes sozinho. Decidimo-nos há uns anos a criar uma plataforma que unisse os agentes culturais e criativos do eixo atlântico, começando pelos países de língua portuguesa. Esse projecto assentava em desenvolver Centros Culturais em cada uma das capitais dos respetivos países, permitindo aos seus agentes tantas vezes esquecidos dispor de um palco e de uma janela de oportunidade para se promoverem e divulgarem os seus trabalhos. A tudo isto juntava-se uma plataforma digital que inclui rádio, televisão , uma revista e diversos eventos , conferências e cimeiras.Fomos convidados para apresentar o projecto no Parlamento Europeu. Assinámos protocolos com diversos Governos e sempre fomos designados como uma lufada de ar fresco de quem apostava numa outra forma de promover e rentabilizar a Cultura.

Foram desenvolvidos mais de 300 eventos, dos encontros de economia criativa aos concertos, instalações, exposições de arte, atuações e espetáculos , homenagens e conferências, nacionais e internacionais. Moda e poesia.Pintura e artes plásticas. Música e arquitetura. Cimeira da Cultura e Indústrias Criativas do Atlântico (com a recepção da comitiva do Governo da República de Cabo Verde, com a honrosa presença do Primeiro Ministro de Cabo Verde e do Ministro da Cultura e Indústrias Criativas de Cabo Verde, além do Presidente do Governo Regional da Madeira). Tertúlias e tantos outros. Investidos mais de 300.000 euros num projecto em Machico, num espaço que estava parado faz anos. Mas parece que há pessoas que nunca estão satisfeitas e que vivem da inveja e do falhanço dos outros para se alimentarem. Que caem em cima à primeira falha e esperam sorrateiros no escuro da esquina para pisar quando tropeçamos. Nada de novo. Com isso podemos nós bem. Com o Covid-19 veio a mensagem, é fundamental cooperar e abrirmo-nos a esse imenso Atlântico. Machico não pode ficar fechado em si mesmo. Não há integração sem a produção de conhecimento conjunto. Os sistemas têm de cooperar. Não haverá respostas aos desafios do futuro se não houver intercâmbio de conhecimento, de cultura e de tecnologia. Não podemos continuar na dependenciolândia. As instituições têm de criar uma verdadeira rede de parceria atlântica. Não há nem multilateralismo, nem integração sem confiança e sem partilha de padrões e procedimentos de governança baseada nas boas práticas de cooperação institucional.

Chegamos por isso ao momento de tomar decisões, num momento delicado em que todos os sentimentos se misturam, por estarmos a atravessar, por razões extraordinárias, uma crise que ninguém pediu nem tão pouco anteviu, onde foram suspensos temporariamente projectos que dariam corpo ao crescimento do projecto através do Hotel Cultural e que permitiria a sustentabilidade financeira da aposta numa programação mais exigente e sobretudo com dimensão e cooperação internacional, cabendo por isso agradecer ao Presidente Miguel Albuquerque, mas infelizmente a poucos mais... Aos velhos do Restelo, que continuem a falar sozinhos... a todos os que nos ajudaram nestes dois primeiros anos, bem hajam. É tempo de equacionar se valerá a pena continuar com todo este esforço e sacrifício nesta primeira capital da cultura do Atlântico, onde não nos valorizam nem reconhecem, quando nos vão abrindo tantas portas lá fora, em que somos bem recebidos, estimados e desejados... parece que às vezes temos que sair e ter reconhecimento lá fora para que tenham saudades nossas por cá...

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