Crónicas

Debaixo das luzes

E o Natal, mesmo que dure pouco e às vezes pareça hipócrita, cumpre o que promete que é dar de quase todos nós a melhor versão.

Os dias correm depressa para a Festa e, no mail, tenho dois convites para jantares, daqueles que enchem depois os restaurantes com empresas, ginásios e pessoas felizes, com barretes de renas a balouçar na cabeça e umas fotografias sorridentes no Instagram. E, embora me falte o talento para estes quadros natalícios, aprecio o espírito daqueles grupos que se deixavam ficar na placa central, iluminados pelas decorações e embalados por umas ponchas e pela música que sai dos altifalantes espalhados pela cidade.

De uma certa maneira traz-me memórias antigas, de quando aquele espaço entre a Sé e o Golden enchia ao fim da tarde com a rapaziada do Liceu e da Industrial e se dividia entre os que ficavam à frente da Sé, os que se encostavam na esquina da AEG e os que se sentavam no Golden. Ou depois, quando a moda se voltou para as esplanadas da marina, onde acabavam todos por ir lá dar para conviver numa realidade a três dimensões, de volta de umas imperiais, entre conversas e risadas.

A vida ou era a três dimensões ou não contava pelo que, quem queria existir, tinha de ir a onde iam os outros todos, mesmo que fosse por uma escassa hora e meia, entre o toque de saida e o autocarro das sete e meia. Aquela tertúlia de gente nova dava sentido aos nossos dias, falava-se dos assuntos do momento, víamos os rapazes e eles a nós, naquele jogo do olhar que, no frente a frente de carne e osso, a coisa complicava-se muito. Os rapazes deviam sofrer mais já que se esperava que a iniciativa viesse deles. E, quando vinha, uma frase fora do lugar podia estragar tudo. Eu, pelo menos, tinha a impressão que sim, já que lá por cima no Laranjal a história era outra, não se falava livremente a não ser no grupo de jovens, mas isso tinha o aval da paróquia e era diferente daquela malta de jeans e camisola em cima dos ombros, com a rodagem da cidade. E não podia haver pior do que que gaguejar, enquanto o calor do sangue a subir chegava às orelhas e me deixava incapaz de articular uma frase que não parecesse rude ou mesmo parva. O que, devo dizer, aconteceu muitas vezes.

Os desastres faziam parte daquela forma de conviver a onde chegávamos todos como desconhecidos, o engraçado era descobrir que o loiro que parecia surfista afinal tinha uma voz esganiçada e só tinha interesse em motas e marcas de carros. Ninguém imaginava que se pudesse fazer diferente, o mundo era assim, de gente na rua, a conversar ao fim da tarde como, pelo menos por um mês, se volta a fazer no mercado da placa central pela altura da Festa e em todos os outros jantares de natal, em que elas vestem as melhores roupas e eles deixam o sofá e o comando da televisão.

E o Natal, mesmo que dure pouco e às vezes pareça hipócrita, cumpre o que promete que é dar de quase todos nós a melhor versão. Ficamos mais bonitos, sociáveis, com gestos capazes de resgatar o quotidiano ao juntar a família num almoço ou encontrar os amigos na rua e, sem pressa, deixar-se ficar pelo prazer da conversa, pelo gosto de rever alguém e com ele partilhar umas ponchas, iluminado pelas decorações de Natal e embalado pela música da época a tocar nos altifalantes.