Crónicas

De que falam os miúdos

A exclusão era cega. Não havia ‘influencers’, não tinham esse nome, mas todos sabíamos onde procurar inspiração e a quem copiar o melhor que se pudesse e soubesse. Os populares, eles e elas, tão novos e tão seguros, bonitos, nem muito marrões, nem demasiado baldas.

De que falam os miúdos, os adolescentes que, em grupos, passeiam pela praia, descem as escadas rolantes do centros comerciais e enchem a cidade nas noites de sexta para sábado? O que dizem, que conversas fazem quando não estão com o nariz no telemóvel a ver vídeos de ‘youtubers’ e ‘influencers’? Eu tenho uma vaga ideia das minhas conversas naquela idade, lembro-me da coscuvilhice em torno das estrelas da música pop, de um ou outro actor, lembro-me que repetíamos no pátio da escola as conversas que ouvíamos em casa e na televisão, fosse de política ou um documentário sobre a fome na Etiópia.

Ainda que a Internet fosse ao tempo uma previsão extravagante, a cada moda nova como usar as mangas das t-shirts arregaçadas, nós acabavámos a vestir, a falar e a pensar da mesma forma. E os que ficavam de fora tinham um desgosto. Sei que também havia padrões. Os loiros de olhos claros estavam em vantagem, o bronzeado fazia subir na escala, a roupa unissexo e os cabelos ao natural podiam operar milagres. Gordos, caixa-de-óculos, com roupa feita em casa, marrões e apreciadores de livros, música clássica e maníacos das boas notas estavam decididamente no fim da lista.

A exclusão era cega. Não havia ‘influencers’, não tinham esse nome, mas todos sabíamos onde procurar inspiração e a quem copiar o melhor que se pudesse e soubesse. Os populares, eles e elas, tão novos e tão seguros, bonitos, nem muito marrões, nem demasiado baldas. Por um lado, quase humanos, podíamos partilhar os apontamentos, esclarecer as dúvidas e; por outro, tão longe da nossa existência, se se entrasse no radar teríamos direito a cumprimentos na rua, a um ‘olá, tudo bem?’ Mais ou menos equivalente a fazer parte dos seguidores na conta do Instagram. Não se era estranho, não se era amigo, estávamos ali, existíamos.

Podíamos existir ou escolher um caminho, mas não era simples. Escolher significava prescindir das conversas banais no intervalo, do conforto de não ser apontado como acontecia aos que usavam óculos e aos mais modestos, sem dinheiro, nem maneira de copiar o estilo ou a moda do momento. Lembro-me de que, aí pelos 16 anos, escolhi um caminho, uma mistura do que gostava e do que estava ao meu alcance. Tomei muitas decisões aos 16, 17 anos, que ainda me surpreendem, sobretudo depois de ter passado anos a querer ser outra pessoa. Mais magra, mais alta, mais bonita, mais popular, a viver noutro lugar e com mais dinheiro, muito mais dinheiro.

E quase do nada, com uma determinação invulgar, optei por estudar, por impor essa vontade a uma família de mulheres muito conservadoras, para quem tudo era motivo de angústia, preocupação, que pareciam inquietar-se por nada e a quem o que havia além do Campo do Marítimo metia tanto medo como Admastor. Um coro de vozes seguiu-me naqueles dois anos antes da candidatura, um coro em que se repetiam frases como o “que vai ser, como vai ser, não tens juízo, não pensas no desgosto que nos dás, não tens medo?” Um coro de vozes que, depois, se espantou com a jovem de roupas pretas e surradas, que remexia no fundo das gavetas atrás de óculos velhos das tias e roupas da avó.

“Não tens vergonha?” Eu tinha tido muita, lá no campo de futebol dos Ilhéus no meu fato de treino cor de tijolo, nas saias com restos de tecido da alfaiataria do meu tio Humberto e em todos momentos em que me sentira uma carta fora do baralho, em que tentara entusiasmar alguém por causa de um livro, de um filme que tinha dado na televisão ou como devia ser bom viajar mundo fora. E como era isso, um peixe fora de água, mais valia aceitar, mais valia mudar as lentes e fazer dos óculos velhos uns óculos de sol.

E quando vejo os adolescentes, assim naquelas conversas em que há “muita cena que é tipo qualquer coisa”, todos mais ou menos parecidos, no cabelo, nas roupas e nos modos, empolgados com ‘youtubers’ e ‘influencers’, penso se eles saberão que podem escolher um caminho, um que seja deles, só deles. Não sei se alguém lhes falou dessa possibilidade, mas é provável que a considerem conversa de velho.