Crónicas

D. Lourdes

Se continuasse a ler talvez um dia fosse capaz de escrever, mas, mais importante, ler era bom, acalmava o medo, não o transformava em pânico

A duas filas de barracas são pequenas, há poucos livros, mas a feira fica em caminho e aproveito para olhar o que está exposto e reparo que, desta vez, não tenho a dona Lourdes para aquela conversa que tínhamos sempre por esta altura. Ligou-me em Janeiro, pelos meus anos, gostava de mim de uma maneira inesperada, dizia que me conhecia das crónicas, que se revia a ela, ainda criança, depois rapariga, numa terra remota das Beiras, a muitos quilómetros do meu Laranjal e muitos anos antes de eu nascer.

Ficávamos sempre um bocadinho à conversa, fosse ali ou na livraria, onde, com simpatia, me convidou uns dias antes do Natal de há quatro ou cinco anos para uma sessão de autógrafos. Apareceram poucas pessoas, a Rua dos Ferreiros estava fora de mão, mas lembro-me bem dessa tarde de sábado, rodeada de livros, de ter falado de Aquilino Ribeiro e Horácio Bento de Gouveia, de como o português se pode tornar ilegível quando ganha expressões regionais. Eu dizia que o Aquilino era difícil de perceber, ela respondia que complicado era entender o falar madeirense.

Sei que lhe rabisquei um autógrafo, onde fui fiel a mim mesma e, entre as palavras bonitas que quis deixar escritas, misturei uns riscos e borrões. Entre nós, existia ainda aquela história de ter levado sem pagar um prontuário, que era uma coisa que se fazia na minha adolescência: roubar livros da Livraria Esperança. Os rapazes escondiam os policiais da colecção Vampiro dentro dos casacos e desciam depois com muita calma os degraus da loja. Comigo foi um prontuário, que era um livro caro e dava jeito para a escola e ajudava na dislexia naquele tempo pré-computadores.

Nos anos da faculdade, tirava sempre uma nota de cinco contos do dinheiro que as minhas tias me davam nas férias para comprar livros e, quando não tinha dinheiro, escondia os que queria para os ir buscar e pagar depois. Quando fiquei doente e parti um pé, a minha mãe levava uma lista escrita por mim e ia comprar nas quartas-feiras dos bordados. Nesse Verão de 1994, que foi quente e de muito sol, passei tardes de pé engessado e estendido a ler livros comprados na livraria da dona Lourdes. Foi o Verão em que li os “Cem Anos de Solidão”, “Madame Bovary” e mais uns quantos clássicos que, naqueles meses, serviram como remédio contra o medo de sofrer e de morrer.

Se continuasse a ler talvez um dia fosse capaz de escrever, mas, mais importante, ler era bom, acalmava o medo, não o transformava em pânico. Há quem reze nas aflições, eu leio e há 25 anos não havia outro lugar onde encontrar livros de qualidade a não ser na velhinha livraria Esperança, lá havia sempre o que se procurava. Lembro-me de ver por lá a dona Lourdes e o marido, encontrei-os depois, mais tarde, já a livraria não era só nossa, para consumo local, mas lugar de passagem de presidentes da República, referência em jornais nacionais. A cumplicidade, porém, só chegou mais tarde.

Assuntos há que precisam que o tempo passe por nós. Fizemos conversa nas feiras ali na Avenida Arriaga, depois sempre que nos encontravámos e, um dia, ligou-me com um convite para um chá em casa, queria muito falar-me. E, num domingo à tarde, subi os degraus da livraria e ainda os outros que dão acesso à casa onde vivia. A dona Lourdes que encontrei não era bem a mesma, os diabetes tinham levado as pernas e estava doente, mas recebeu-me com um enorme sorriso. Com a consciência de que não teria muito mais tempo, arrumava papéis e jornais, remexia memórias e roupas, queria ter tudo pronto para quando chegasse a hora.

De entre as revistas velhas e o mais que se acumulava em cima da mesa, tirou um leque pequenino, já velho e disse que era meu, tinha-o trazido de uma viagem a Itália, quando era nova, quando tinha idade para entrar no rali ao lado do marido. Era um daqueles domingos do fim de Novembro, de tardes curtas e frias e eu deixei-me ficar até escurecer, ouvi histórias, bebi chá e trinquei uns biscoitos para diabéticos e, no fim, despedi-me com o coração cheio e um leque pequenino dentro da mala. A dona Lourdes ligou-me mais uns vezes, pelos anos e no Natal, não se esquecia de mim. E agora que passo aqui, entre as duas filas de barracas e o palco onde ensaia música e declama poesia, percebo que, para mim, a feira do livro não é mais a mesma.