Crónicas

Ave César, que o cisne canta...

Nas arenas da atualidade, o sangue já não jorra como na antiga Roma, mas há recintos lúdicos que exibem todo o seu esplendor, sustentado em espetáculos de um passado vitorioso, em que esse sangue foi trocado por espinhas vergadas perante uma demonstração de força e união assente na hipocrisia do coletivo.

Dizem que quando um cisne branco pressente a sua morte, entoa uma bela canção. Talvez a única da sua existência, pois a crença que vem da antiga Grécia, afiança que o cisne passa grande parte da sua vida remetido ao silêncio.

Mas ali, nos minutos que antecedem a morte, reúne as forças que lhe restam e encanta todos aqueles que o escutam, numa tentativa desesperada de fazer frente ao destino de forma honrada e, quiçá, numa qualquer estratégia para demonstrar, perante quem o escuta, que afinal não está moribundo, mas sim no auge das suas forças.

O canto do cisne branco não passa de uma antiga crença que, entretanto, já foi desmistificada, mas a expressão continua a ser utilizada nos dias de hoje para caraterizar as demonstrações de força e de poder daqueles que pressentem um fim iminente.

São diversas as reações perante a inevitabilidade e a certeza de que tudo – homens, mulheres, regimes, organizações, religiões, etc. – tem mesmo um fim. O que muda nesses que comungam do mesmo destino é a forma como encaram o seu prazo de validade e o que vão fazer durante o tempo que lhes resta.

No império romano existiam os gladiadores que sabiam perfeitamente que aquela luta poderia ser a última, mas nem por isso hesitavam em proclamar, de peito cheio, a célebre frase do “nós que vamos morrer, te saudamos”, um lema que Cornelius Tacitus considerou horroroso, pois «mostra a que grau de degradação pode descer a espécie humana» entretida com o sangue derramado em lutas fratricidas, em prol da perpetuação de um espetáculo lúdico que só servia para engrupir um povo tão fácil de manobrar, tão fácil de distrair...

Os gladiadores não passam, hoje em dia, de uma visão heróica, talvez romântica, do cinema, mas o seu lema perante aqueles que se julgam os Césares absolutos dos tempos modernos, continua a ser entoado, sem a incauta bravura dos que acabaram por perecer no tal pão e circo dos imperadores.

Nas arenas da atualidade, o sangue já não jorra como na antiga Roma, mas há recintos lúdicos que exibem todo o seu esplendor, sustentado em espetáculos de um passado vitorioso, em que esse sangue foi trocado por espinhas vergadas perante uma demonstração de força e união assente na hipocrisia do coletivo.

As arenas políticas são tão díspares, quanto estranhas. Muitas optam pelo farisaísmo, protelando as ilusões e camuflando os medos terríveis de perder o chão.

É sem dúvida mais confortável assobiar para o lado, catalogar os confrontos de mera “conversa fiada” e fingir que tudo está bem. A construção de uma narrativa com muita ficção à mistura, está repleta de gritos de guerra contra inimigos que só engrandecem perante as declarações de ódio. Não interessa esclarecer as dúvidas internas, perceber os desconfortos, identificar e lidar com os problemas, resolver diferendos no seio familiar, pedir perdão pelos desrespeitos ou, pura e simplesmente, reconhecer as falhas e pedir ajuda àqueles que juram lealdade.

Ave César, que o cisne canta...

Vivemos numa altura repleta de notórias crises de lideranças resultantes de vários fatores: as mudanças de protagonistas e a inevitável comparação entre o antes e o depois, a modernização da sociedade e consequente acesso a um mundo escancarado onde cada um ganhou voz própria, uma nova mentalidade que muitos não sabem bem como gerir, uma ânsia em ver pessoas novas e dar o benefício da dúvida àquilo que parecem ser boas intenções, um esvaziamento de princípios e até mesmo de ideais que conduz aos ziguezagues das paixões e das verdades que outrora foram absolutas- E tudo isto sem esquecer a própria educação social que ganhou novos contornos.

Há quem não saiba lidar com todas as mudanças que compõem o nosso presente. Há quem vislumbre o futuro agarrado apenas às vitórias de um passado que, obrigatoriamente merece respeito, mas não pode ser o único sistema de ignição. O que ontem foi, hoje já não é mais. Estamos em constante transformação e por mais que queiramos aplicar as estratégias antigas, há que ter em conta que os cenários se alteraram, bem como as condições, os protagonistas e as realidades.

Não somos os mesmos de há 40 anos e ainda bem que assim é! Só revela que as pessoas aprendem com as suas vivências, cultivam-se, educam-se, carregam dentro de si anos e anos de experiências que fazem com olhem para o mundo com outra sensibilidade.

Invocar fantasmas históricos serve para aprendermos a conhecê-los, extrair conhecimentos, perceber o papel que desempenharam nas mudanças que ficam na História para que, depois, possam ser colocados nas prateleiras de figuras notáveis que uns amam e outros odeiam.

Os fantasmas históricos não servem para ganhar guerras e é um erro erguer bandeiras alheias, usando e abusando dos feitos de outrem. Isto revela falta de segurança, de consistência e um medo terrível de não ser capaz de trilhar o seu próprio percurso.

«Se os homens fossem realmente homens, como seria possível um czar?», perguntou Mark Twain.

Pessoas assim, que vivem na sombra dos outros - czares, césares ou fantasmas - e que os invocam a torto e a direito, numa desesperada prece por uma bênção, jamais ficarão por mérito próprio na tal prateleira de notáveis de que reza a História.