Crónicas

As barrigas brancas das lagartixas

Nós corríamos pelo mato seco só para ver os saltos dos gafanhotos e seguíamos com atenção de cientistas o crescimento dos girinos no poço

Eu aprendi depressa a não ter medo de lagartixas, de rãs, de centopeias e de todos os outros bichos que conviviam connosco lá por cima no Laranjal e, às vezes, entravam em casa, causando grande alvoroço. A bicharada, da mais pequena à maior, estava à espreita nos quintais, no caminho e na fazenda. As árvores tinham ninhos e em quase todas as casas havia um cão, que ladrava muito e não fazia cerimónia em morder.

Os dias começavam com o cantar dos galos e as noites eram interrompidas pelo ladrar de um cão, que se ouvia, aqui e ali. Entre nós e os cães, os gatos dormiam ao sol e acordavam à tardinha, trepavam os muros e misturavam-se nas sombras do anoitecer. O barulho das cigarras enchia as noites de verão e era estranho sentir o silêncio que chegava com o calor dos dias de leste, era como se a natureza estivesse a poupar energia e forças.

Nós corríamos pelo mato seco só para ver os saltos dos gafanhotos e seguíamos com atenção de cientistas o crescimento dos girinos no poço. “Olha, olha, aquele já tem as patas detrás!”, gritávamos uns para os outros, o meu irmão, eu e a malta da vizinhança, que não era sempre a mesma, era a que estivesse do nosso lado na altura. O meu irmão e os vizinhos não se davam e, às vezes, aquilo ficava pior, havia porrada, prometiam esperas, atiravam-se pedras.

Quando era preciso contar aliados ficavam poucos, quase sempre o Paulinho, que vivia com os avós, e o Élvio, um miúdo que tropeçava nas palavras e fumava às escondidas. Entrincheirados na casa do meu avô, não podia faltar força para atirar pedras, enfrentar o adversário e, depois, brincar ao que nos desse mais jeito como contar quantos girinos do poço já tinham patas de rã. Não podia haver medo para segurar aranhas por uma pata, não podia faltar fôlego para descer a entrada em cima de uma tábua ou meter o dedo no arame do galinheiro e esperar as bicadas das galinhas.

Quem não fizesse era burro ou palhaço e ninguém queria ser isso. Eu desci a entrada em cima da tábua e acabei a meio das orquídeas e dos berros da minha tia Teresa. Nunca fui graciosa, nem ágil, nem tive alguma vez as qualidades físicas do meu irmão, mas não fugia, corria atrás, trocava os pés, batia de cabeça ou com outra parte do corpo, caía e sacudia o pó e continuava. Aqueles anos foram uma espécie de recruta, de treino para dificuldades, para as coisas boas e as más, as que davam medo ou as que davam só um nó no estômago como tocar nas barrigas brancas das lagartixas.

A infância é isso, é um treino e lá por cima, no Laranjal, entre os pintainhos acabados de nascer e as ninhadas de coelhos, os cães de dentes arreganhados nos quintais dos vizinhos e os gatos a dormir ao sol, aprendia-se a gerir alianças, a ir à guerra, a atirar pedras e a levar com as pedras, a engolir derrotas, a celebrar vitórias, a imaginar todos os dias brincadeiras novas e a fazer tudo isto longe do olhar dos adultos. Os homens estavam a trabalhar, as mulheres bordavam e só entravam em acção em caso de sangue. E nós éramos livres.