Crónicas

As árvores

As árvores são anti-modernas porque retribuem, mas não gratificam. A árvore demora a dar likes no Instagram. As árvores são anti-modernas porque retribuem, mas não gratificam. A árvore demora a dar likes no Instagram

Comoveu-me a história do exército de bombeiros que se deslocou à Austrália para cumprir a missão, especial e secreta, de salvar as “árvores dinossauro”. “Árvore dinossauro” é o nome comum do Pinheiro Wollemi, uma espécie única no Mundo, que habita a Terra desde as eras do Pterodáctilo e do Velociraptor. Há imagens. Numa orla coberta de cinza e devastação, as árvores dinossauro agitam a verde as suas escamas.

Comoveu-me porque conseguiram. E comoveu-me porque me senti compreendido.

Suspeito que a missão tenha sido secreta por motivos lamentáveis: por não faltar quem condene a despesa de tempo e de meios com estas árvores, quando ao lado ardiam bens, koalas e cangurus.

Não é este um sentimento que se preze. Não falta dar valor a coisas e bichos. Mas falta dar mais valor às árvores e a tudo o que elas implicam, ainda que a custo humano e material.

Sempre gostei de árvores. Ao contrário da maior parte das crianças, nunca me surpreendeu que fossem seres vivos.

O meu professor de golfe, que eu adorava, soube disto e gozou comigo a adolescência inteira: ‘Fontana, tu tens a mania que gostas de escrever, mas não sabes os nomes das árvores’. Andava com as mãos atrás das costas, num gingar característico e alegre, que por vezes interrompia para troçar da minha ignorância. Escolhia uma árvore grande ou distinta, e apontava o guarda-chuva como um mestre-escola: esta o que é? Eu falhava, e ele dizia. ‘Plátano’; ‘Castanheiro’, ‘Freixo’.

Décadas mais tarde, foi dele que me lembrei quando me ofereceram “A Árvore em Portugal”, de Francisco Caldeira Cabral e Gonçalo Ribeiro Telles – um livro hoje recheado de notas em rodapé dos campos e das árvores que aquele guarda-chuva me mostrou.

Não estou sozinho nisto.

Em 2013 e 2016, depois dos grandes fogos no Funchal, a cidade amanheceu diante de uma serra descoberta. Foi uma tristeza. Mas uma tristeza inominada. Discutiram-se causas, debateu-se o turismo, calcularam-se a olho os prejuízos. Mas as pessoas sentiam um vazio mais simples, e por isso mais profundo. De dia, evitávamos a vista da serra como quem desvia o olhar de um credor. À noite, quando escurecia, sentia-se o alívio de quem desliga a luz no quarto de um doente. Não eram as coisas que nos faltavam, nem os turistas, nem o dinheiro. Eram as árvores. Tínhamos todos sido roubados.

Porque não admitimos, candidamente, a falta que as árvores nos fazem?

Simples. Porque as árvores nos lembram da vida do espírito, daquilo a que podemos aspirar, mas não alcançar, e essa distância cansa e inquieta-nos.

Com os animais, por exemplo, não é assim. Não gostamos deles pelo que são, mas por nos parecerem aquilo que os humanos deviam ser, e não são. No sentido moderno, gostar de animais tem então a mácula do egoísmo, porque tem a marca da necessidade. Procuramos, neles, a simulação de uma humanidade que nos parece perdida, mas ainda possível, e da qual desesperadamente carecemos. Os animais dão.

Já as árvores revelam-nos uma forma de transcendência. Têm truques. Parecem renascer todos os anos, enquanto nós só envelhecemos. São bonitas, mas são-no simétrica e discretamente, sem as baixezas xaroposas da queridice e da fofura. Estão frescas e sólidas toda a vida, e escondem a idade em anéis de fibra. Morrem, mas de pé. Parecem vivas depois de mortas, sem que pareçam mortas enquanto vivem. São, nisso, desumanas, diferentes de nós, tanto que não é possível admirá-las sem humildade e alguma humilhação.

As árvores tiram antes de dar, e por isso pertencem harmoniosamente aos cemitérios, aos adros e às ermidas. Convidam à calma e à temperança, e por isso foram marcos, tribunais, concílios e parlamentos. As árvores são sombra, protecção, alimento e beleza, mas são-no depois de um tempo e de um planeamento que, em dias de incerteza, nos parecem inúteis e perdulários.

Não é por capricho que, quando nos aconselham a fazer algo que dure, recomendem ter um filho, escrever um livro, ou plantar uma árvore. E não é coincidência que cada vez se tenham menos filhos, se escrevam menos livros, e se plantem menos árvores.

As árvores são anti-modernas porque retribuem, mas não gratificam. A árvore demora a dar likes no Instagram. As árvores são anti-modernas porque retribuem, mas não gratificam. A árvore demora a dar likes no Instagram. A árvore no espaço público é mal escolhida, mal dominada, e é podada e mutilada na medida do seu embaraço, cedendo perante qualquer outra forma de cultura, negócio ou interesse.

Diz-se que uma sociedade se torna grande quando velhos plantam árvores em cujas sombras nunca se deitarão. É verdade.

E nada é tão elucidativo da nossa pequenez, e da natureza totalitária, sádica, e perversamente egoísta de um certo ambientalismo como o desdém por essa tarefa tão eficaz, quanto bela e urgente, que é a de plantar mais árvores, e de cuidar mais delas. Orgulhemo-nos muito, e por muito tempo, da missão especial que salvou as árvores dinossauro.