Crónicas

Aqui na terra

O complicado era encontrar a roupa e o dinheiro, que não havia além do essencial. A nossa vida era o essencial e era preciso imaginação para criar além daquela frugalidade.

Quando chegou o dinheiro com televisões e sistemas de som, mobília nova às prestações, empréstimo para o apartamento da cooperativa e o carro, aquilo confundiu, nem deu tempo para a pensar. O consumo levou pelo braço uma geração que dera o melhor de si a inventar maneiras de dar a volta ao que não tinha. Nem coisas, nem atenção. Os pais matavam-se a trabalhar e as elites nos jornais e na televisão preferiam debater a democracia burguesa parlamentar a escrever sobre os miúdos que jogavam à bola na rua e viviam as experiências pedagógicas na escola.

Nem sei se nos viam, mas lembro-me de como estranhavam o nosso gosto na música e nos penteados. Nos penteados, de facto, não era o melhor e o meu pai, que era daqueles senhores que andavam com um pente e um espelho redondo na algibeira, não percebia a moda unissexo, de mulheres de cabelo curto e homens com roupas esquisitas. Tudo tão misturado que, na televisão, nunca sabia bem se era um rapaz ou uma rapariga a cantar nos videoclipes do Top Disc. Ainda não havia o discurso da diferença de género e já nos vestíamos como nos dava jeito.

O complicado era encontrar a roupa e o dinheiro, que não havia além do essencial. A nossa vida era o essencial e era preciso imaginação para criar além daquela frugalidade. A cada moda que vinha na revista Bravo, que irrompia pelos corredores do Girassol e se via por todos os lados da baixa do Funchal, era preciso ir ao fundo das gavetas, transformar o que já havia, subir a bainha, tirar colarinhos ou bordar camisas. Dar uma segunda, terceira ou quarta vida a tudo mesmo antes de se ouvir sequer falar de reciclar e reutilizar ou do ambiente. Não é que não estivesse lá o medo do fim do mundo, estava e podia chegar se alguém carregasse no botão e nos mandasse para a guerra nuclear.

O mundo dividia-se em russos e americanos e, se fossem para o confronto, só haveria de sobrar baratas entre os destroços. Tínhamos todos visto isso nos filmes e nos desenhos animados do Conan, o rapaz do futuro. E dava medo pensar um mundo destruído, mas ninguém nos amparava, não havia psicólogos. Cada trauma, cada desastre na escola, cada humilhação por ser gorda ou caixa de óculos era assunto nosso, como o medo do fim do mundo. Chorava-se muito, doía muito até deixar de doer e, às vezes, era preciso esconder as lágrimas não fosse a mãe descobrir os olhos inchados e fazer perguntas.

As casas não eram grandes, o telefone estava preso à parede, quase sempre numa mesinha no corredor e os segredos eram difíceis de manter, custavam a continuar segredos. O pai podia ouvir a conversa e todos os dias eram um desafio à imaginação. Tínhamos de inventar a moda, preservar a intimidade, enfrentar a vida no pátio da escola e continuar a acreditar de que ia haver mundo para nós, aquela massa de miúdos de camisas largas e miúdas de permanente no cabelo a quem ninguém dava muita importância.

E foi esta geração que o consumo levou pelo braço, acho que por parecer mais fácil, estava ali à mão. A roupa feita, um empréstimo para uma casa só nossa e um carro para não ir aos encontrões no autocarro, o sistema de som para ouvir a música que nos apetecesse. Todas aquelas facilidades, aquele dinheiro todo dos anos 90 confundiu-nos, comprámos mais do que devíamos, fomos seduzidos pelo bem-estar e pelo conforto até darmos conta que, na verdade, o mundo continua a ser o mesmo e pode até acabar. Na rua há uma geração a pedir o mesmo que nós pedíamos há 30 anos: o direito a viver por mais uns anos aqui, na Terra.