Crónicas

E corro para apanhar o 12

Escondo-me atrás dos óculos, fazem-me parecer uma professora primária e têm aros dourados.

A amêndoa leva tempo a desfazer-se na boca e eu não tenho pressa, o sol aquece-me a pele depois de um mergulho de pés na água ainda fria. A piscina está quase vazia, há um grupo de rapazes que faço de conta que não vejo, várias raparigas aos pares e eu, que não arranjei companhi e vim na mesma. Não quis perder o calor das férias da Páscoa, até trouxe um livro, daqueles complicados, o Amante, Margarithe Duras. As miúdas da faculdade andam todas a ler, agora também eu o estou a ler, comprei na Livraria Esperança.

O mar, as risadas dos rapazes e o “splash” dos mergulhos roubam-me a atenção, está uma tarde bonita, quase aposto que será um daqueles dias em que apetece tomar uma imperial e dividir um pires de tremoços na marina. Eu gostava, se tivesse companhia, se os amigos e amigas que fiz em dois meses de Lisboa estivessem por aqui. Não posso esquecer, prometi que mandava postais. E vou enviar aqueles com vistas que comprei na tabacaria do Apolo.

Um dos rapazes olhou duas vezes, acho que não reparou no calor que me subiu pela cara. Se me vier falar não vou saber o que dizer, aqui não se pode disfarçar. Na faculdade sempre há a desculpa das fotocópias e dos apontamentos e às segundas-feiras vamos de monte ao cinema, é mais barato. Depois falamos do filme, parece normal, a conversa roda, falamos de outros filmes ou dos lugares de onde somos. Eu sou daqui, do Funchal, um bicho raro, não há como fugir das piadas à maneira de falar, faz parte.

Escondo-me atrás dos óculos, fazem-me parecer uma professora primária e têm aros dourados. Não sei o que me deu para escolher estes óculos, mas agora já está e tão cedo a minha mãe não me dará dinheiro para outros mais modernos, quem sabe uns Armani com armação em tartaruga. Vi uma miúda lá da faculdade com uns redondos, eram bem giros. Estes dois meses na faculdade têm mostrado muito, até a mim. Tenho três endereços para mandar postais, são três amigas diferentes, nunca tinha feito tantas amigas e em tão pouco tempo.

Eu sei que uma rapariga que lê e usa óculos não tem sucesso, é uma armadura contra rapazes e aquele que tem olhado há-de desistir. Nunca sei o que é para dizer a seguir, não tenho muita conversa e o melhor é que fique assim, não vá tudo se estragar, ainda pede o número de telefone e será o cabo dos trabalhos explicar tudo à minha mãe. Lá por cima, no Laranjal, não há amigos e namoricos, só existe um fim: que é casar. E casar é um assunto para daqui a muitos anos. Pronto, vou apanhar um pouco mais de sol.

É capaz de ser demais para um dia só, este sol e este calor. A cara começar a arder, os ombros também, mas o bronzeado ajuda. A minha mãe ficou preocupada com o meu ar pálido, em Lisboa os dias parecem mais curtos, não se anda como aqui, com a cara exposta à brisa do mar e ao sol do meio dia. Há anos que as tias não comentam o meu tom de pele, a pequena tão trigueira, ai que tão mal empregado. Ouvi eu muitas vezes quando estava a crescer, não era lá muito bom ser morena de cabelo quase preto.

Meto mais uma amêndoa na boca para o caminho, quero ver se dá tempo para colar os selos e mandar os postais, é melhor que seja correio azul, assim não chegam depois de mim. E é engraçado que tenha saudades do ar de Lisboa, das amigas, dos amigos, que me pareça mais simples meter conversa com alguém na fila para o almoço na cantina ou no átrio do anfiteatro do que na piscina do Lido, que frequento desde os 15 anos. Talvez seja verdade, a nossa casa não é apenas um lugar, podem ser muitos.

E nisto corro para apanhar o 12, que tem escrito Jamboto, Via Hospital, vai deixar-me à porta de casa, na curva de caminho onde cresci.