Crónicas

A minha tia Alice

A minha tia Alice deixava-me ler os livros de banda de desenhado do meu primo, fazia-me lanches de pão com bananas e contava-me histórias de quando era nova e não havia luz, nem televisão.

A minha tia Alice lia todas as crónicas com a devoção de uma mãe e, em certa medida, fomos isso, fomos mais e tivemos mais do que é suposto haver entre tios e sobrinhos. E não sei se existe um nome para as saudades que vou ter daqui em diante.

Dos telefonemas logo de manhã para perguntar se tinha lido as notícias ou para desfiar o rosário de tudo o que lhe doía, queria falar, matar a solidão dos últimos anos e o medo que lhe dava pensar na morte. Não gostava de ser velha, nunca se conformou com isso.

E era complicada, difícil, mas era a minha tia Alice e, entre nós, havia este laço sem nome. Não preciso de pensar muito para a ver comigo ao colo no dia em que desmaiei no chão da sala.Ou as manhãs de domingo e as tardes de quarta-feira, quando a minha mãe ia à missa e aos bordados.

A minha tia Alice deixava-me ler os livros de banda de desenhado do meu primo, fazia-me lanches de pão com bananas e contava-me histórias de quando era nova e não havia luz, nem televisão.Às vezes, escapava-me casa adentro só para ver o gira-discos e o telefone e respirar a ordem das coisas bem arrumadas.

No turbilhão da adolescência, a casa da tia Alice era um refúgio e, quando fiquei doente e parti um pé, passei lá umas semanas com a desculpa de que tinha menos degraus para subir e descer. A verdade é que queria que cuidasse de mim.

E, embora nunca me tivesse dito assim com todas as letras, gostava de mim, gostava de ser minha tia e dedicava-me um carinho que me fará falta, é como perder um pouco mais da infância, um pouco mais da minha mãe, é morrer um pouco.

Terei sempre a memória da nossa vida, do que fomos uma para a outra, da dor que partilhámos, das mortes que ambas chorámos, das alegrias e, sobretudo, de todos os dias normais que tivemos, das vezes que rimos e das muitas em que discutimos. E da minha tia Alice a dizer-me para lutar e vencer, a repetir para não ter medo, que era eu daqueles que lutavam e não tinham medo.

Só não terei a tia Alice para me lembrar disso num telefonema logo de manhã.