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Crónicas

A inventar uma maneira

A telescola funcionava ali no Laranjal pequeno onde assegurava o segundo do ciclo à miudagem naqueles arrabaldes de casas rasteiras, becos estreitos e famílias de muitos filhos. O dinheiro custava a ganhar e não chegava para mandar os pequenos para as escolas da cidade, que exigiam livros, cadernos, roupa, sapatos, um guarda-chuva e o passe para andar nos horários da Companhia de Automóveis de Santo António, Ltd. Também conhecida como CASAL, orgulho da freguesia por saber como levar as pessoas a onde era preciso.

Mas andar abaixo e acima naqueles autocarros desconjuntados custava dinheiro e esse era o bem mais escasso entre o povo, que vivia com o mínimo em casas lotadas. Quando o governo decidiu que a quarta classe não chegava e quis alargar os estudos, recorreu à telescola, não fosse alguém ficar de fora deste plano generoso de levar mais saber a mais crianças. A nossa abriu no Laranjal, umas curvas de caminho acima da minha casa e para onde não contava ir.

A minha mãe tinha decidido que não, que a telescola podia ser mais barata e mais cómoda, mas o melhor era fazer o esforço de nos matricular numa escola com professores e alunos e salas de aula. Há 40 anos esta era a doutrina e, embora ainda se morresse de doenças como o tétano, a maioria de nós tinha as vacinas em dia e não discutia a vantagem de ir à caixa levar as gotas contra a poliomielite. O mais cansativo era passar horas à espera no Campo da Barca só para mostrar o teste da BCG, mas, todos sabíamos que era maior o risco de morrer ao cair de cima de uma árvore do que de turberculose.

E a falta de dinheiro tirava mais oportunidades do que qualquer doença. A minha mãe estava convencida disso, tinha a ideia de que a telescola fazia o mesmo e, lembro-me bem, defendeu-me dos conselhos mais conservadores, que às meninas não fazia diferença, fosse na telescola ou na escola da cidade, um dia arranjava um noivo e desinteressava-me de tudo. E lá se ia a despesa, a dona Celina que deitasse contas à vida. Os preconceitos também tiravam oportunidades. Lembro-me de como ouvir estas conversas me dava medo, eu queria ser parte dos que iam para as escolas da cidade.

A telescola era, na minha de cabeça de criança, sinónimo de coisa menos boa, mas visto a esta distância foi a maneira rápida de chegar a mais alunos naquele país pobre, de famílias grandes e casa lotadas, que lutava para educar mais crianças, para lhes dar um futuro. E, no fim, ter feito o ciclo com aulas pela televisão ou na escola, acabou por dar no mesmo. Num certo sentido, fomos privilegiados por ter termos sido capazes de inventar o que não havia, de resolver e de levar a vida com a barriga. Não foi tudo tal e qual como devia ser. Tivemos aulas em barracões, em anexos improvisados, com professores sem estágio feito, passámos por greves e vários modelos de avaliação.

E estamos aqui ainda atordoados com as últimas semanas, com este ritual de, ao meio dia, ligar a televisão para contar mortos e casos de infectados, ainda sem perceber como foi esta volta que nos levou de regresso a 1980 e à telescola para as crianças até ao 9º ano. Quase sem dar por isso estamos a descartar as manias e a ser mais como era antes: a inventar, a criar, a encontrar maneira de viver.

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