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Terrorismo doméstico

O problema do porte de armas não é um problema de princípio. É sim um problema situado

Contrariando a velha narrativa de que “os Estados Unidos são o melhor país do mundo”, no início deste mês ocorreram dois atentados em dias consecutivos, neste país, ambos protagonizados por jovens-adultos americanos de 21 e 24 anos.

Apesar de toda a desgraça, este já não é um cenário atípico em solo americano, sendo também característico o debate que a ele se segue: restrição do acesso às armas, discurso “politicamente incorreto” presidencial enquanto causa desta violência e a emergência do fascismo e da extrema direita. Desta vez, até houve o retorno da discussão acerca da violência demonstrada em videojogos enquanto catalisadora principal de violência no mundo real, porque, como todos sabemos, é mais razoável acreditar que a culpa é de jogos e não da venda facilitada de armamento por parte do equivalente ao Pingo Doce nos Estados Unidos (Walmart, cadeia de supermercados onde ocorreram estes atentados).

Peguemos no debate das armas. Importa primeiro perceber o porquê dos americanos serem tão resistentes a qualquer alteração dos seus direitos em relação ao porte de armas. Prende-se aqui uma razão histórica associada à independência deste país em relação à Grã-Bretanha, país que queria desarmar as suas então colónias a fim de neutralizar qualquer poder de revolução que estas pudessem e evidentemente acabaram por demonstrar. Com o passar dos séculos, esta necessidade acabou por se mutar ligeiramente, passando o porte de armas a se justificar como uma forma de defesa do povo contra o Estado, uma ideia muito usual em grupos anárquicos de direita política. Como podemos ver, está longe de ser uma ideia aberrante.

Contudo, importa também lembrar as condições político-sociais em que se encontram os Estados Unidos na atualidade, pelo menos aquelas mais reveladas pela imprensa internacional e, sobretudo, pela americana. Tensão racial, tensão política e tensão social generalizada em temas de cariz biológico e psicológico (sexo, género e afins). Com todas estas coisas, tipicamente ampliadas pela interação digital constante, é de esperar a própria alienação do indivíduo e a construção de inimigos imaginários (sejam eles civis aleatórios ou grupos limitados em razão das suas características, como etnia por exemplo). Juntam-se estas condições à aquisição facilitada de armas de fogo e qual será o resultado? E, em vez de remendar o tecido que constitui a comunidade americana, o que fazer? Apontar dedos uns aos outros, sendo o exemplo mais caricato disto o facto de a NBC ter determinado que o atirador de 24 anos era de extrema-direita enquanto a CNN, por sua vez, que era de extrema-esquerda.

O problema do porte de armas não é um problema de princípio. É sim um problema situado. Importa lembrar que uma maior liberalização no comércio das armas não é sinónimo de violência, sendo o caso da Suíça o expoente máximo disso na medida em que é um país que aponta altas percentagens de detentores de armas de fogo mas apresenta níveis nulos de atentados deste estilo.

Assim, importa perceber que nesta área é necessário abordar os EUA como uma criança: se não se porta bem deve então ser castigada com a tirada dos brinquedos e idealmente educada a se comportar, sendo esta educação equivalente ao remendo do tecido que une, ou unia, os americanos, assim como uma correção da sua empatia humana, cuja falta se demonstra em muitos outros aspetos.