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Suspensos

Parece um filme de catástrofe, mas é real, está acontecer: os hospitais a abarrotar em Itália, as estatísticas dos mortos e a economia que nos alimenta a afundar.

Tenho quase 50 anos e, com estes anos todos, vivi a angústia pessoal de uma doença oncológica e vi o sofrimento dos que perderam pessoas e casas nos dias e meses que se seguiram às grandes cheias de 2010. E senti medo quando o fogo se espalhou naquelas noites dramáticas de Agosto de 2016, mas nada teve a dimensão destes dias, em que estamos suspensos por uma doença que chegou silenciosa, que primeiro era coisa dos chineses, uma piada e agora está em todo o lado.

Parece um filme de catástrofe, mas é real, está acontecer: os hospitais a abarrotar em Itália, as estatísticas dos mortos e a economia que nos alimenta a afundar. Não há como evitar pensar no que será ficar doente, ver adoecer os outros ou ser uma das vítimas da crise que se seguirá a tudo isto. Eu penso, sei que haverá ondas de choque, mesmo depois de se declarar o fim da epidemia. E saber isso basta-me. Não preciso das teorias da conspiração, nem de culpar os governos ou entrar em negação.

O momento é este, não vai mudar mesmo que corra a comprar mais do que devo e, menos ainda, se decidir seguir os conselhos não oficiais dos muitos cientistas, génios no controlo de epidemias e suspostos médicos que apareceram por ai, nesse mundo paralelo das redes sociais. A realidade não se altera se vociferar pela falta de informação quando ela chega clara, a cada momento: evitar contactos, lavar as mãos, ficar em casa. Talvez a história conspirativa seja mais sedutora, talvez seja mais engraçado o cientista com sotaque brasileiro, acredito, mas os factos são factos.

A vida é o que é, tem enredo que chegue como esta epidemia que nos apanhou numa altura em as doenças contagiosas tinham desaparecido e até havia correntes contra as vacinas, como se fosse uma má ideia manter a população saudável. Agora, com as férias e as viagens adiadas, remetidos a casa, sem o café, o copo à noite e o concerto, as lojas para entreter e comprar, temos tempo e não sabemos como usar. A última vez que os centros comerciais e os supermercados fecharam ao domingo foi aí em 1995.

E isso foi no século passado. Uma parte das pessoas ainda não tinha nascido, a outra esqueceu como era ficar em casa, a moer o tédio e a ver televisão ou a namorar pelo telefone com a mãe a gritar pela demora e pela conta. Não era fácil encontrar um café aberto, nem todos tinham carro e era chato meter-se num horário ao domingo à tarde para dar aquele passeio dos tristes. As compras faziam à sexta e ao sábado de manhã, comia-se o pão da véspera e até sabia bem. O que não havia não fazia falta e o fim de semana acabava com um jogo de cartas ou de dominó.

O almoço era o de casa, com o toque das mães, os jantares também e, para a maioria, comer fora era um luxo. A vida em família era assim, à mesa, de roda da televisão, no quintal com os cães a dormir no terraço. E nós por ali, a tirar do sério pai, mãe, as tias solteiras e, às vezes, até a vizinhança. E por isso, estavámos muitas vezes de castigo, sem ordem para ir a lado algum. Ou se ficava a ler ou a olhar o vazio. Não era por causa de uma doença, que mata e é perigosa, era por não haver dinheiro e ficar em casa não envergonhava tanto. E tínhamo-nos uns aos outros, que é o que de facto conta.

E vai contar nestes dias e até que se possa sair à rua sem medo, quando for possível passear, quando estivermos todos de novo, ai, nos cafés, nas lojas, no trabalho, nos transportes, a levar as nossas vidas, a fazer as nossas rotinas, a falar de falta de tempo e de dinheiro para viajar e correr mundo.

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