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Se bem me lembro...(3)

Recordo-me um “pastor” que foi cantar ao Menino Jesus, com uns versos muito bem humorados, mas que o padre não gostou e recusou-se a aceitar a garrafa de licor e ele ao chegar à rua pôs a garrafa à boca e foi um folego só...

Nos meus tempos de criança, o Natal começava com as missas do Parto, a 16 de Dezembro e em número de 9, sendo a última a missa do Galo (se calhar hoje proibida pelo PAN?) Era celebrada de madrugada para que ninguém perdesse o seu dia de trabalho e cada missa era mandada celebrar por uma família ou por uma pessoa, seguindo uma ida a um quartinho para tomar “meio grogue” de aguardente de borra em peça, clandestina, uns licores e umas broas. O segundo passo era no dia 18, com a morte da maior parte dos porcos, pois não havia nem frigoríficos, nem congeladores e muito menos eletricidade e era preciso manter a carne fresca para a noite de Natal, embora grande parte fosse para o salgueiro, que tinha ficado vazio do gaiado. Seguia-se, no calendário da aproximação do natal a limpeza da chaminé.

Recordo-me de, quando ainda muito jovem de o meu pai limpar a chaminé para que o Menino Jesus descesse por aí e colocasse os presentes no sapatinho que tínhamos colocado à lareira. Ao tempo utilizava-se a lenha para fazer o almoço e o jantar, que também ajudava a aquecer a casa, fria do Inverno. A iluminação era a partir do petróleo em candeeiros de vidro, ou as chamadas “bruxas” de zinco, junto á lareira e ao forno. Era com a luz que emanava destes acessórios que verificavam se o comer já estava cozido ou se a “mistura” que constituía a sopa, estava coberta de água.

O fumo sai por uma chaminé feita em cimento, com uns buraquinhos lá no topo e com o uso da lareira, a fuligem cobria as suas paredes internas. Era preciso tirar essa fuligem ou ferrugem, para que o Menino Jesus pudesse entrar sem se sujar. Quando víamos esta operação, sabíamos que a Festa, palavra que se usava para designar o Natal estava a chegar. Era nesta época que muita gente comia o seu bocadinho de carne de vaca, que tomava um cacau ou cafezinho de “fora”, termo que se utilizava para designar o café café, porque nos outros dias era cevada, ou quanto muito uma mistura. Ainda me lembro da dose da mistura quando se ia à “venda” comprar: 15 tostões de café de fora e 5 de cevada, num total de dois escudos, que corresponderia por aí a umas 20 ou 50 gramas de café de fora e um quarto de kg de cevada.

Na véspera de Natal lá nos apastorávamos para ir à missa do Galo (o PAN que nos desculpe mas acho uma homenagem aos animais a missa que comemora o nascimento de J. Cristo ter um nome de um animal) e participar nas romarias ou simplesmente assistir. Estas romarias começavam a ser ensaiadas às escondidas, para que as pessoas das outras romarias não soubessem a letra dos versos nem o “sum”, termo que se utilizava para designar a música, cerca de um mês antes. Também havia os pastores que levavam presentes para o Menino Jesus, mas quem ficava com eles era o padre, seu representante e procurador com poderes para receber os presentes. De um modo geral os versos referiam-se a algo do quotidiano, escritos tal como se pronunciavam, como por exemplo, uns anos mais tarde, quando começou a guerra colonial, era frequente ter a palavra Ultramal a rimar com Natal. Recordo-me um “pastor” que foi cantar ao Menino Jesus, com uns versos muito bem humorados, mas que o padre não gostou e recusou-se a aceitar a garrafa de licor e ele ao chegar à rua pôs a garrafa à boca e foi um folego só...

Já em casa comíamos a carne assada na panela, que poderia ser de porco ou de vaca ou as duas com semilhas pequeninhas a acompanhar. As crianças iam para a cama dormir, para que no dia seguinte, dia de Festa, pudessem acordar cedo para ver os presentes que o Menino Jesus deixara nos sapatinhos que ainda estavam na lareira. De um modo geral tínhamos uma peça de vestuário e um brinquedo, um carrinho de folha ou uma bola de “visgo”, nome dado á borracha, porque durante o ano jogávamos com bolas feitas de meias, apertadas em “cu de galinha”.

Ao pequeno almoço era obrigatório o uso do pijama para o pessoal do sexo masculino e a camisa da noite para as do sexo feminino e tomávamos o habitual cacau com umas sandes de carne assada e de língua de vaca afiambrada, que muitas saudades me dá agora. Era obrigatório vestirmos uma peça nova de roupa e passávamos o dia em casa, ninguém podia sair, era o dia da família, jogávamos às cartas e ao dominó, deitávamos bombas, conversávamos, até que a noite chegava e cedo íamos para a cama, porque no dia seguinte, a primeira oitava, era dia de ir á missa, de ir ver as lapinhas dos vizinhos, ver e também, puxar à “parreira”, ( consistia em puxar uma corda grossa, uns para o lado e outros para outro. De um modo geral e como a freguesia e´dividida pela ribeira de Santo Antão, puxavam para o lado Leste os da “Serra d’Água” e para Poente os residentes no “Farrobo”), tomar um licorzinho ou laranjada na casa do padre que devolvia nesse dia os objectos das romarias que não eram para oferta, mas simplesmente decoração... embora a Festa só acabasse no dia do padroeiro, Santo Antão, a 17 de Janeiro, a nossa mente de criança, já começava a pensar:” falta tanto tempo para chegar à Festa...