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Se bem me lembro... (2)

A questão que se tem falado muito ultimamente, da mobilidade, faz-me lembrar os meus tempos de criança, em que tudo acontecia de barco ou a pé. Eu nasci numa quinta-feira de um belo dia de Sol do mês de Julho com o mar bom, que permitiu que o “Gavião”, barco que fazia a ligação ao Funchal, desde que o mar permitisse. Segundo a minha mãe me contava, estava eu a nascer e a minha irmã a olhar para o Gavião que estava ao largo e a dizer “Gavião traz o meu mano...”

As outras duas hipóteses de chegar ou de sair do Seixal, além do mar era ir a pé para São Vicente pelo Caminho Real ou atravessar a serra no sentido Norte/ Sul, chegar à Ribeira Brava e apanhar o barco para “ a cidade”.

Tinha eu um pouco mais de um mês e levaram-me de barco para São Vicente, para ser batizado na sua igreja paroquial porque os meus padrinhos, que eram tios, irmãos da minha mãe, que também eram naturais de São Vicente, viviam no Funchal, em São Martinho, onde o meu tio era padre cura: O Padre Eleutério Caldeira, num barco de pesca a remos e aconteceu que ao ser varado no calhau de São Vicente veio uma onda maior e o barco virou. Eu estava bem seguro pela minha mãe e apanhei o primeiro batismo de água salgada e quando chegamos à casa da minha avó e me mudaram a fralda, era areia por todo o lado...

Entretanto a estrada São Vicente / Seixal, aos poucos ia-se aproximando desta freguesia e foi num dia de Agosto de 1950, talvez o Sábado antes do penúltimo Domingo, dia tradicional da festa do Senhor, que o primeiro carro chegou até junto da igreja, ainda com a estrada por acabar e em terra.

Recordo-me bem da sua construção. Via passar o rapaz com as caçarolas de milho, ao meio dia e de sopa de massa à tarde, preparadas pelo “Manuel da cozinha” para as refeições dos trabalhadores que à mão foram abrindo aquela bela estrada que o atual Governo Regional abandonou e entregou à Câmara Municipal do Porto Moniz como um presente envenenado. E na fase final sentia-me um privilegiado porque tinha um primo que conduzia um carro de carga e por vezes levava-me com ele. Ora nessa altura toda a “canalhinha” corria para andar de carro!!!! Até que um dia o Engº Campos, diretor e parece-me que dono da empresa de construção que estava a abrir a estrada, me proibiu de andar no carro da empresa, o que me deixou bem chateado, mas visto a esta distancia fácil era de perceber que era muito perigoso para mim e para a empresa.

A estrada depois de pronta, ali mesmo junto á minha casa tinha uma pequena reta que passou a ser o nosso campo de futebol, pois nessa altura não chegava a meia dúzia o número de carros que por aí passava e faziam tanto ruído com o motor que dava tempo a interrompermos o jogo e a tirarmos as pedras que serviam de balizas. Alguns tinham que tirar os sapatos ou botas para evitar que ficassem estragados e jogavam descalços. Contudo um de nós tinha que ficar de vigia porque o senhor Alberto, o regedor da freguesia, se nos apanhasse, tirava-nos a bola de meia e nunca mais nos dava, ou se fosse de “visgo” cortava-a...

Entretanto a estrada continuava o seu caminho em direção à Ribeira da Janela, pois já estava aberta até aí, vinda pelo Porto Moniz que acabava numa ponte feita de ferro sobre a ribeira. Entretanto tinham começado, também da Ribeira da Janela para cá e o túnel grande já estava pronto, recordo-me que a primeira vez que o atravessamos a correr, demoramos 4 minutos...

Nesse tempo tínhamos que ir fazer o exame de Quarta Classe à sede do Concelho e lá fomos pela estrada em construção, enquanto pudemos, porque demos de caras com o mar a nos barrar a passagem. A maré estava ainda muito alta. Esperamos um bom bocado e quando a descida da maré nos permitiu, lá fomos saltando de pedra em pedra, até chegarmos a terra do outro lado... O regresso, já “doutorado com a Quarta Classe”, foi feito, também da mesma maneira: a pé, ou de “autobutes”, como costumávamos dizer e sempre acompanhado com a minha irmã mais velha que eu um pouco mais de dois anos e meio, porque a minha mãe ficou com os outros dois irmãos.

Algumas vezes o percurso entre o Seixal e o Porto Moniz era feito num dos barcos a motor da empresa baleeira que os mantinha naquele porto para a caça às baleias e cachalotes. Lembro-me de ter feito essa viagem no “ Jacaré” e no “Janota”...

Enfim, problemas de mobilidade sempre houve, mas com uma grande diferença, nesse tempo nem podíamos reclamar porque a ditadura não permitia... A democracia foi implantada, teoricamente há mais de 40 anos, pois “o deficit democrático” sempre foi uma constante na Madeira e agora ainda mais acentuado, servindo também para permitir que aqueles que nem souberam o que foi a ditadura de Salazar e Caetano, digam mal da verdadeira democracia....