Saudades deles
Eles são assim. Fleumáticos, corajosos, de graça sobre pressão
Vai por aí algum prazer pela saída do Reino Unido da União Europeia. Prazer perverso, de quem aprecia o circo quando arde. Prazer intelectual, do adepto do meandro constitucional. Prazer de substituição, dos eurocépticos que vislumbram nos ingleses a candeia que vai à frente. Prazer de prevenção, dos eurófilos que esperam que essa candeia se espalhe, e que o exemplo desse espalho os proteja.
Esse prazer, se é legítimo de uma perspectiva lúdica, ou para dar soltura ao gémeo maléfico que todos levamos por dentro, é na substância sinal de falta de carácter, ou de visão.
As figuras infelizes do Reino Unido não resultam de aselhice, esperteza saloia, ou ambição, casos em que o gozo seria merecido. Resultam antes de uma histórica e admirável reverência pela lei: pelo voto popular, pelo Parlamento, pelos tratados internacionais.
Sendo o referendo uma decisão estúpida, os britânicos navegam-na, ainda assim, com princípios e ordem. Não andam de prorrogação em prorrogação pelo que têm de mau, andam pelo que têm de bom. E o que têm de bom é muita coisa.
A França, por esta hora, não tinha carro por arder nem montra por partir. A Alemanha nunca se meteria nisto, o que não é necessariamente uma qualidade. A Itália, dividida como sempre, tentaria como sempre enganar todos por igual. Espanha faria, por orgulho, questão de sair sem acordo, e despenhava-se com valentia, espectáculo e drama. E Portugal trataria, com sonsice mal-escondida, as instituições como a piada que realmente são, ignorando ou repetindo o referendo consoante o calendário eleitoral.
O que surpreende não é que os outros países simulem comoção pelo impasse na Casa dos Comuns. O que surpreende é que os britânicos também entrem no fingimento, quando sabem que se conduzem, neste jogo de chacais, com dignidade invejável e única.
Eles são assim. Fleumáticos, corajosos, de graça sobre pressão. Modestos quanto ao orgulho nacional, mas desbragadamente orgulhosos da modéstia nacional. No início, Churchill dizia que estariam sempre com a Europa, mas nunca seriam “da” Europa: “We are with them, but we are not ‘of’ them”. Quando se juntaram, em 73, afirmaram-se por essa diferença. Não trouxeram só um país, trouxeram uma civilização. Um bastião de livre-comércio e liberalismo político, e o berço do Estado de Direito. Uma tradição institucionalista e conservadora, de progresso estável e pacífico. Uma potência militar e económica, com a rede diplomática mais larga e experimentada do Mundo. Uma cultura única, que alberga as melhores escolas e Universidades do Velho Continente. Um lugar de imaginação e ciência, curador de uma língua tão rica quanto franca.
São também um pouco snobs, claro. Mas quem não seria?
Perder o Reino Unido é perder, na Europa, um pouco de tudo isto. Londres, por razões egoístas que pouco interessam, foi sempre partidária da coesão entre os 28, seja através da recepção à Alemanha reunificada, da defesa do alargamento a Leste, ou da protecção do vínculo aos Estados Unidos e à NATO. Trazia à União um sentido de unidade estratégica e de propósito, enquanto dividia o poder para o afastar dos centros mais óbvios. Sem o Reino Unido, a União fica continentalizada, dividida num eixo franco-alemão desequilibrado e viciado pelas suas preferências e prioridades.
O Brexit será trágico por lá. Empobrecimento, instabilidade política e financeira, queda da libra, riscos de secessão da Escócia e da Irlanda do Norte.
Mas será, também, trágico por cá. Perdemos um pivot, um amigo, um aliado antigo. Mas perdemos sobretudo uma Nação que, na exasperante burocracia de Bruxelas, tentou sempre orientar o arco da História no sentido da Justiça.
Sem eles, ficamos mais longe dos outros, talvez até de nós.
Vamos ter saudades dos bifes.