Raul Lino na ilha dos ananases
não se deve levar muito a sério o que os arquitectos escrevem sobre o seu ofício
“Raul Lino ficará para história mais pelo que impediu que fosse feito do que pelo que fez” – assim se referiam alguns dos meus mestres, na década de 80, a um dos mais prolíficos arquitectos portugueses do século XX. Na sua opinião, Lino ter-se-ia destacado sobretudo como censor e propagandista de um regime que cultivava o reacionário portuguesismo da tradição (a “arquitectura português suave”) contra o revolucionário internacionalismo do moderno (a “arquitectura bolchevique”). A polémica faz-nos hoje sorrir, mas o chiste era injusto. A convicção política de um autor nada tem a ver com a qualidade arquitectónica da sua obra. Obra que, no caso de Lino, foi vasta, não só a construída como a escrita. Nesta última (pasme-se!) conseguiu mesmo ser o único arquitecto português a escrever um best-seller sobre arquitectura portuguesa: A Nossa Casa, Apontamentos sobre o Bom Gosto na Construção das Casas Simples – assim se chamava o retumbante livrinho publicado em 1918. Em 1920, quando o meu avô o ofereceu à sua noiva, ía já na terceira edição (herdei-o e guardei-o, amorosamente, na prateleira dos clássicos).
Durante a década de 40 do século passado, o prolífico arquitecto realizou alguns projectos na Madeira: o restauro dos Paços do Concelho, o chafariz do Largo do Colégio, ou a Vila Ema, hoje à sombra do Savoy, na Av. do Infante. “Nunca se pergunte em que estilo se vai construir – afirmou peremptório no seu best-seller – é lógico que se construa no estilo da região”. Mas terá Lino obedecido à sua própria máxima? O edifício do antigo Grémio dos Exportadores de Frutas e Produtos Hortícolas da Ilha da Madeira, à Av. do Mar, responde à questão. O tímpano que encima a entrada principal ostenta um cesto em cantaria lavrada do qual transbordam as frutas produzidas na ilha. Porém, no desenho inicial que Lino enviou ao cliente, coroando o dito cesto, figurava em lugar de destaque um repolhudo ananás. O presidente do grémio protestou: “– um ananás na Madeira, senhor arquitecto”? O arquitecto tentou justificar-se: “Na verdade, perante a tentação de aproveitar o interessante motivo decorativo do ananás [...] escapou-me que aquele fruto não é cultivado na Ilha da Madeira”. Na segunda versão, a que foi construída, apressou-se a substituí-lo por um cacho de bananas.
Moral da história: não se deve levar muito a sério o que os arquitectos escrevem sobre o seu ofício, as máximas que proclamam, as receitas que prescrevem, os manifestos que alardeiam. O que deles fica é a obra construída (se as gerações seguintes decidirem preservá-la...). Do que Lino construiu, recordo sobretudo uma “casa simples”, toda branca, alcandorada na crista da falésia das Azenhas do Mar, num desses lugares inabitáveis que visitamos no Verão, ao entardecer. Do que escreveu, não recordo senão a frase que mandou gravar numa das janelas da sua casa, em Sintra, e que (ironia do destino) não é dele, é do Xeque Sadi de Shiraz: “Se tiveres de sobejo, sê liberal como a tamareira. Se nada tiveres para dar, então sê um azad, ou um homem livre, como o cipreste”.