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Quando são os médicos a ficar internados... até dói

“Em Portugal, 50% dos médicos sofre de exaustão. Entraria num avião se soubesse que metade da tripulação está em burnout?” António Vaz Carneiro

A recente promulgação pelo Representante da República do diploma que obriga os médicos a se internarem no hospital, deixou-me com pensamentos malévolos.

Daqui para a frente, quando chegarmos ao Serviço de Urgências, os médicos vão atender-nos de pijama e pantufas, já vejo mesmo alguns deles com aquele gorro com o guizo na ponta tipo Noddy e até não será raro encontrarmos fotografias das famílias em cima das mesas, para os médicos se lembrarem de quem deixaram em casa antes de começarem a fazer estas famigeradas horas extraordinárias ILIMITADAS.

O Representante até devia estar bem intencionado quando se referiu ao direito ao descanso, mas até agora estou confusa: como é que direito ao descanso e ao tempo com a família se casa com a expressão horas extraordinárias ilimitadas? Ao contrário do que acontece a nível nacional, aqui a malta come e cala, ou melhor, não come, porque não tem tempo. E não se cala, apedar de ninguém a ouvir.

Andei a imaginar os altifalantes das urgências a chamarem o familiar do Dr. José para acompanhá-lo nos dez minutos de pausa a que vai ter direito. Os filhos, em férias de Verão, a dar água ao pai que está de serviço há 96 horas, porque o obrigam a fazer horas ilimitadas e foi traído pelo cansaço a beber soro do frasco de uma velhinha abandonada para a família viajar.

A minha imaginação fértil saiu das Urgências e entrou na Unidade de Cuidados Intensivos, onde os médicos aproveitam as camas vazias e se ligam às máquinas, cansados por terem ali entrado na semana anterior, também estes com direito às visitas da família no horário normal.

Esta minha mente viajada ainda subiu às restantes unidades hospitalares, onde me deparei com um médico a dormir na sala de partos e uma mulher em trabalho de parto a não querer gritar para não o acordar, porque se o homem acorda mal disposto ainda lhe faz um corte até meio das costas de que ela nunca mais se vai esquecer.

Isto vai ser giro, vai. Os médicos nem vão tirar o pijama, porque o descanso a que têm direito é para dividirem as casas de banho com os doentes porque já não vão ter discernimento para chegar às suas, atenderem uma chamada com o estetoscópio em vez do telemóvel, perguntar aos enfermeiros que dia é da semana e depois enfiar o termómetro no nariz em vez de no ouvido de uma criança.

Os meus pensamentos malévolos, esses, vão já longe e imaginam-me a pedir o nome completo, data de nascimento e número da Ordem para ver se está no ponto antes de começar o rol. Se disser tudo torto, está certamente em condições de atender quem aprovou o documento e quem achou que podia seguir para publicação.